Parte Cinco - Heart.

Michael me ligou em plena sexta-feira me chamando para dar uma volta com ele, e é claro. No mesmo lugar aonde ele me levou naquela semana passada. Na mesma sexta-feira em que o braço da minha mãe resolveu aparecer na porta de casa. Não tivemos aula por conta do tempo. A chuva só cessou na parte da tarde, e como todos moram longe do colégio, preferiram suspender o dia, o que foi bom. Beatrice estava reagindo melhor a toda a situação. Voltou a ser a garota metida de antes, ou estava fingindo bem, o que era aceitável, e que chegava a ser engraçado. Papai estava voltando a participar de tudo e querer saber de tudo. Imaginava ser uma desculpa de querer relembrar os velhos tempos, ou até mesmo, fazer valer a pena este tempo todo em que ele se desligou da gente. Prometeu que no fim de semana faria algo decente para nos comermos, e até nos ensinaria pescar em um rio próximo da casa. Mas com aquele tempo, imaginava que não teria forças e nem roupa o suficiente para ficar em beira de rio.

Estava esperando Michael na porta de casa quando Pedro veio correndo na minha direção com Bea, e abraçou as minhas pernas. Ouvi o ruído seco do motor da moto e soube de quem se tratava. O que não era um problema mas meu irmão não me soltava em momento algum. O que me fez sentir aquele aperto no peito, mas não que fosse algo ruim, era algo bom. Engoli em seco para não chorar e me abaixei, olhando-o nos olhos e ajeitando seus cabelos como sempre desgrenhados Um dos seus dentes havia caído durante a semana, deixando-o com uma janela enorme e engraçada, mas não tirou aquela essência que Pedro tinha. Angelical. Sua pele era branca como a minha e da minha irmã, seus cabelos mais claros que os nossos e seus olhos, era mel.

- Ei garotão. Vou dar uma saída. Que tal amanhã ir nos dois tirarmos algumas fotos de alguns esquilos? - Sabia que ele não tinha mais idade o suficiente para agir feito uma criança e muito menos tratá-lo como tal. Só que ele vinha estando tão sensível, que tinha medo de retirar o resto da casca da sua ferida e começar a sangrar. Pedro concordou com a cabeça por um momento e se virou para ver Michael chegando de moto. Ele estacionou e visualizou a cena por um tempo até me ver sorrir. Beatrice pegou o irmão no colo e o arrastou para dentro, enquanto eu me arrastava para a garupa da moto de Michael, que logo me entregou o capacete, e partiu em disparada rumo as ruas parisienses.

Trazia comigo a minha mochila, por via das dúvidas eu não perderia nada, nem mesmo um clique, tanto que comprei um rolo de filme novo e outro extra. Para não correr riscos. Vi as mesmas ruas que eu vi e descobri na sexta-feira passada. Senti os mesmos cheiros e absorvi as mesmas pessoas da qual fui apresentada e tive a chance de perceber como nem todas as pessoas eram ruins e nem todas, desejam seu mal.  Michael com toda paciência do mundo esperou eu fotografar tudo, captar tudo e encontrar ângulos dos quais, para outra pessoa, era bobeira. Mas era algo tão diferente e encantador que me senti sozinha, e nem liguei ao receber uma cutucada nas costas e ver que Michael estava me mostrando os lugares para mim fotografar. Pelo fato das fotos saírem na hora, percebi que já tinha um punhado dentro da bolsa e deveria parar, caso contrário, estragaria o meu encontro.

- Cansou, pequena? - Michael sussurrou em meio a uma longa espreguiçada. Suas costelas ficaram em destaque na blusa fina que ele vestia.

- Não. Por mim ficaria aqui. Não me canso fácil! - Protestei. Mas logo percebendo que se dependesse de mim realmente ficaria ali. Mas deveria pensar nele também. Já fazia algumas horas que estávamos ali, e tinha me distraído tanto que nem percebi que ele poderia querer ir pra casa. - Quer ir embora não é? - Abaixei a câmera enquanto via ele se aproximar. Seu cabelo havia crescido um pouco, tirando um pouco aquele velho estilo militar que o deixava tão bonito. Ele sorriu antes de pegar uma mexa de cabelo meu e enrolar entre os dedos.

- Não, não quero ir embora. Quero te mostrar um lugar antes da gente ir comer algo. - Ele me segurou por uma das mãos e me obrigou a correr. Cheguei a olhar para trás para tentar ver se havia deixado algo pra trás, mas nem tive tempo o suficiente. Seguimos em meio aos becos e casas Contemporânea até chegarmos ao que parecia ser uma floricultura, ou melhor, um parque aos arredores de Paraíso. Para alguém como eu, deveria me sentir confortável por isso já que vivia em meio a uma floresta, que poderia ser considerada um parque enorme e pouco visitado. Não vi muitos bancos, mas vi algumas pessoas andando e mexendo em boa parte das flores que tive tempo de ver. Encontrei roseiras, orquidários, árvores enormes de cerejeira, glicínia que era pouco comum de se ver por aqui, mas sua cor arroxeada me chamou a atenção, azaleia que também era belíssima, primavera, casos diversos de lavanda.

- Fecha seus olhos, pequena. - Querendo ou não fui obrigada a fechar meus olhos e ficar apenas sentindo os perfumes diversos em torno de mim. Devagar ele foi me guiando e eu só podia ouvir o som dos galhos se partindo a cada passo meu e o dele. O cheiro foi ficando mais fraco e o som dos pássaros mais intenso, até que ele me parou. - Pode abrir.

O que não ponderei. Via um enorme campo de dente de leão, e era realmente um campo em meio a um punhado de árvores de troncos finos e sensíveis. Não havia muita claridade a não ser os pouquíssimos raios de sol que invadiam o lugar. Me sentia tão pequena ali em meio a um lugar tão bonito e diferente. Tinha vontade de fazer como naqueles filmes em que a mocinha corria desesperada em meio ao campo, deitava ali mesmo e se desligava, sem se preocupar com o que viria a acontecer depois. O pouco de vento que batia em torno da gente, não espalhava ou estragava uma "pétala" que fosse dos dentes de leão, e eram tantos que se tornava incapaz dizer que um estragaria o outro. Olhei para Michael que sorria com os braços cruzados. Seus olhos tinham pequenas rugas nas laterais, assim como nas laterais do seu nariz, parecia ser uma cicatriz tão minúscula, mas combinava com ele, que seria estranho parar pra imaginá-lo sem.

- Dizem que quando anoitece, são tantos que eles brilham no escuro. - Quis rir. Ele estava fazendo piada da situação e eu apenas me aproximei. Dando um pequeno cutucão em seu braço.

- Seria interessante se fosse verdade. Obrigada mais uma vez por me trazer aqui. - Sem pensar duas vezes eu queria abraçá-lo, mas não o fiz por medo. Aprendi isso com a vida, nunca espantar as pessoas assim, mas ele parecia não se importar com isso, me contive ainda assim. Michael pegou a câmera das minhas mãos e ajeitou sobre os olhos prestes a fotografar.

- Vai lá. Quero tirar umas fotos suas. - Nunca ninguém havia dito isso para mim mas aceitei. Fui pisando delicadamente em meio a cada galho e raiz em destaque eu via. Quando me vi em um meio a um punhado de dentes de leão, passei a mão sobre a minha saia levemente rodada e florida e foi o momento em que ouvi o "Click" da máquina. E foi assim que ele foi fotografando cada movimento ou pose ocasional que eu fazia. Assim que havia cansado de toda aquela "atenção", corri até ele e tomei a câmera dele.

- Pode ser a minha vez? - E então ouvi outro "Click". E assim se tornou vários. Não queria ver o resultado agora, apenas em casa, na minha cama, sem ninguém pra me atrapalhar e também não daria este gostinho para o próprio Michael ver meu talento com polaroid.

- Depois você me mostra? - Neguei com a cabeça antes de ir pegando o mesmo caminho que tínhamos entrado no parque. Michael vinha logo atrás de mim todo curioso até se colocar ao meu lado todo ofegante. Seu nariz estava levemente avermelhado assim como seus lábios, que estavam numa linha reta e ainda assim delicada. Tinha certeza que ele havia percebido a forma com que eu o olhava já que parou no meio do caminho e me segurou por um dos braços enquanto guardava a máquina na mochila.

- Vamos ver. Não costumo mostrar as minhas fotografias pra ninguém. - O que era verdade, mas ele com certeza acharia que estava mentindo. Ressentido foi se aproximando até estar tão colado em mim a ponto de sentir cada parte do seu corpo até mesmo os que eu não me permitiria sentir num momento daqueles. Seu perfume se tornou mais forte, mais masculino a ponto do meu nariz coçar. Pude ver como sua sobrancelha era bem desenhada, como seu nariz era bonito e tinha uma curva engraçada, levemente afeminada, mas só combinaria com ele. Seus dentes eram levemente tortos e eu só pude perceber olhando-o tão perto, tão íntimo, que estranharia se estivesse vendo uma cena como aquela. Uma de suas mãos se ergueu e tocou a lateral do meu rosto, desenhando com delicadeza a maçã do meu rosto, parou apenas quando me segurou pelo queixo e seu dedão roçou no meu lábio inferior. Queria mordê-lo, queria abraçá-lo e ao mesmo tempo ter forças o bastante para pará-lo.

- Eu sei que você vai me mostrar. - E então ele veio, pude sentir como sua boca era quente e seu hálito levemente adocicado, me lembrava leite com café e isso me deu uma vontade tão intensa de experimentar. Seria meu primeiro beijo, o primeiro com uma pessoa desconhecida e que me permitiria a sentir, a gostar, embora meu coração erguesse placas, desse sinal de fogo e faltasse subir pela minha garganta pra me parar eu me deixei levar. Seria uma boa desculpa se ele já não estivesse me beijando. Busquei envolver meus braços em seu pescoço e roçar os cotocos de dedos que eu tinha, que sempre estavam sujos de tinta ou de caneta em sua nuca, seu cabelo arrepiava a pele nua dos meus braços e da minha mão, era eriçado, grosso, e eu não queria largá-lo. Seu corpo foi me impulsionando para trás até me ver encostada ao que parecia ser uma árvore. Em momento algum Michael pareceu dar um fim aquele beijo, o que eu no fundo também não queria, primeiro porque não saberia o que fazer após receber um beijo daqueles, segundo porque era bom demais para ter um fim.

Eu poderia olhá-lo nos olhos e dizer o quanto ele estava sendo bom comigo, mas que deveríamos parar por aqui e ser apenas amigos. Segunda-feira no colégio eu não o olharia nos olhos, passaria a ignorá-lo e agir como um garoto faria com uma garota. Seria apenas pequenos beijos e mais nada, porque garotos tinham o costume de fazer assim. Tomar o coração em suas mãos e depois jogá-los de lado como se não fossem nada. Ou poderia olhá-lo nos olhos e sorrir apenas, e esperar que ele falasse qualquer coisa que não me fizesse corar mais do que eu corava no normal. Seus lábios devagar se separaram dos meus e eu mantive meus olhos bem fechados, apertados por um longo estante até ter meu corpo abraçado. Seu aconchego era bom pra mim, e mesmo eu não precisando disso agora, eu aceitei. Me mantive colada em seu corpo quieta até que ele beijou a linha do meu pescoço e se afastou.

- Você esta bem, pequena?

- Acho que deveria parar de me chamar assim, não sou tão pequena. - Sussurrei. Erguendo a cabeça e olhando-o finalmente. Michael parecia o mesmo, despreocupado e sorridente de sempre. Com as mãos nos bolsos e me esperando com certeza recompor para irmos embora. Passei a mão sobre a minha blusa branca e sobre a saia da qual vestia, estava até de meia calça naquele dia não só pelo frio, mas pela própria moto em que Michael sempre me obrigava a subir.

- É pequena sim. A minha pequena. Vem, vou te comprar um sorvete de iogurte de amora.

- Idiota.

* * *

Estava em casa e morrendo de frio, tanto um banho quente foi a minha única salvação, e livramento de pensamentos idiotas que cercavam a minha cabeça. Era estranho se ver sem ninguém pra conversar ou contar uma novidade. Sem ninguém pra você chegar desesperada e dizer que te aconteceu algo tão bom e tão...complicado, que você precisava falar pra ela. Tinha Patrícia, mas ainda não tínhamos intimidade o bastante para eu chegar nela e dizer que havia ficado com o seu "Amigo". Não saberia a sua reação e estranharia se fosse eu no seu lugar, do nada a novata anunciar que ficou com alguém em tão pouco tempo. Não iria poder chegar em Beatrice, na minha própria irmã e dizer que estive boa parte do meu dia na companhia de Michael e que no fim, nos beijamos como se não houvesse amanhã, o que infelizmente teria, e eu continuaria com esse mesmo pensamento.

E pra variar, havia sido convidada para um churrasco na sua casa no domingo, onde com certeza boa parte dos seus amigos estariam e a própria Patrícia estaria lá, encarando e estranhando o motivo da novata estar numa festa que ela estaria acostumada a sempre ir sem empecilhos. Coloquei meu moletom mais velho e me deitei em meio a luz que vinha da janela. Estava até de óculos para poder ver aquele punhado de fotografias que eu tinha comigo. Eram tantas, mais tantas que me sentia orgulhosa e ao mesmo tempo confusa aonde colocaria tanta foto. As fotos que Michael havia tirado de mim estavam lindas, e ficariam mais lindas ainda se tivessem sido editadas no computador e recebido um tom mais delicado para um lugar tão fantástico.  Cheguei nas fotos em que mais aguardava, as que Michael aparecia, sorria feito um bobo, suas presas eram o destaque e os olhos estavam apertados de tanta força que ele havia feito para sorrir pra mim enquanto clicava cada pose sua. Havia apenas uma em especial que iria guardá-la comigo e levaria aonde fosse. Uma em que aparecia nós dois, abraçados e bem ao fundo, um punhado de dentes de leão levemente desfocada. Ele estava sério, e me olhava enquanto eu me mantinha fixa olhando para a câmera, procurando uma forma de nós dois sairmos na foto sem ninguém ser cortado. Seu nariz estava encostado na minha bochecha e um dos seus dedos estavam enroscados em meio aos meus cachos. Guardaria aquela foto no meu armário, e aquele dia também no fundo do meu coração.

O famoso domingo havia chegado e eu tremia feito vara verde desde o momento em que coloquei os pés para fora da cama. Papai fez questão de fazer algo para mim levar no almoço da família "Rose", o seu prato tão conhecido em casa e comum em qualquer outra coisa se não fosse o meu pai quem não tivesse feito. Vendo assim ele parecia melhor após essa semana turbulenta, e cumpria a sua promessa, de voltar a cozinhar e agir como o pai que Beatrice, Pedro e eu merecíamos e precisávamos com a gente. Revirei meu guarda-roupa inteiro em busca de uma roupa que coubesse bem ao momento e que ninguém me olharia e me rotularia no mesmo instante. Beatrice fez questão de me emprestar seu batom cor de melancia, dizendo que combinaria com o tom da minha pele, passou um blush bem suave na minha bochecha e até me deixou usar seu rímel, o que antes era loiro e quase invisível, agora negro e curvado, meus olhos pareciam mais brilhantes, e tinha um motivo em especial.

Coloquei no final das contas o meu vestido florido e cinturado, alças comuns, pescoço e colo do peito levemente à mostra e visível, além é claro do meu tão famoso colar em forma de asa que havia ganhado no meu aniversário de 15 anos.  Nunca o tirava, por isso estava sempre escondido, porque sempre era motivo das pessoas perguntarem o motivo, e agora com todo o acontecido, me lembraria ainda mais mamãe. Ajeitava o coturno de cano médio nos pés quando a campainha tocou e sabia que era Michael, o que me fez ficar eufórica, e correr o mais rápido possível para abrir a porta. Geralmente a mãe abriria a porta, se mostraria surpresa em ver que a filha teria um "encontro", diria como os dois estavam bonitos e combinavam, mas desta vez seria eu mesma em que faria essa cena. Michael estava com uma calça jeans escura e larga para seu tipo físico, juntamente com uma camisa cor de rosa e de gola preta. Um dos seus braços estava para trás e a cabeça se inclinou um pouco quando ele me viu. Os olhos desceram e subiram até parar no meu rosto e ele respirar fundo.

- Oi. Entra um pouquinho! Vou ir buscar meu cardigan e já vamos. - E só voltei minutos depois com um refratário do papai, e uma blusa pendurada em um dos braços. Me despedi de Beatrice e Pedro que estavam voltando da cidade, e até de papai que estava cortando um punhado de grama que nascia nas laterais da casa. Pela primeira vez Michael não vinha me buscar de moto, estava com um Opala preto totalmente reformado e "tunado" como diriam os garotos. Assim que ele abriu a porta para que eu pudesse me sentar e eu senti o couro macio do banco me senti nas nuvens. Tinha uma diferença bem grande subir na garupa de uma moto e se acomodar num banco de um carro com cheiro de novo.

- Gostou do meu bebê? - Me assustei ao ver Michael já ao meu lado e ligando o carro. Ele tinha um ronco suave mais ainda assim era perfeito demais. Sempre tive paixão por carros antigos, em especial o Opala, seu estilo, ainda mais por me lembrar Supernatural, um seriado do qual eu descobri a minha paixão por ele.

- Eu amei. Ele é muito bonito e esta bem conservado. - Sussurrei conforme ele pegava caminho para a sua casa.

- Não estava conservado assim. Era do meu pai, e gastei uma grana boa pra reformar ele e deixar assim. - Michael me olhou e sorriu tão malicioso que me fez arrepiar até os pelos da nuca.

- Eu imagino que sim. - Estava apostando as fichas certas em que ele de fato era bem mais velho do que eu imaginava. - Se não for problema pra você. Quantos anos afinal você tem?

- Finalmente perguntou. Eu tenho dezoito anos! - Disse ele sem problema algum. O que me espantou foi ele ser mais velho e ainda assim estar tão pra trás no colégio, mas não demorou para mim entender o motivo. - Viajei muito com meus pais. A minha mãe se separou do meu velho e voltou depois de um tempo, e acabei ficando com ela. Dizem que filhos homens são mais apegados ao pai, só que sempre fui mais apegado a ela, a Mônica. Mais hoje eles estão juntos e felizes, ou melhor toda a família.

- Isso é bom. Pelo menos estão juntos. Você não é filho único pelo visto.

- Sou o quarto filho da família. O mais novo. - Mais uma surpresa para mim e não pude esconder. - Tenho dois irmãos gêmeos. O Vita e o Peter, tem 29 anos, tenho mais um irmão chamado Tae de 23 e vem eu, Michael de 18 anos. Diz a minha mãe que na época não se tinha coisa melhor pra fazer do que um filho. - Ele mesmo riu da piada, e eu então tentei conter a risada, mas ainda assim saiu. Entramos no que parecia ser um condomínio no meio da cidade, onde logo ele estacionou em frente a uma casa ao velho estilo americano. Sua casa me lembrava as casas vitoriano, janelas brancas e portas também, enquanto a sua cor era de azul bebê delicado e parecia ter sido pintado a pouco tempo. E de fato a casa era enorme. Toda cuidada e cercada por madeira, não sabia se era um bom meio de proteção, mais deixou a casa mais delicada. Michael abriu a porta para que eu pudesse descer e tomou das minhas mãos o refratário ainda quente. Passei por meio a grama até subir os degraus pra sacada e então, estar em meio a sala da família "Rose". Toda a casa tinha um toque feminino, mais lotado de fotografia da família que era grande demais para a minha que estava acostumada com tão pouco movimento ou visita de parentes em casa. Bati a porta e segui Michael pelos corredores até chegarmos ao quintal. Pra minha surpresa estava de fato cheia. Ele cumprimentou algumas pessoas enquanto em mantive parada apenas observando tudo. O quintal era enorme, além uma piscina bem no meio, mesmo que sem ninguém nadando, vi algumas crianças com seus pés nas beiradas e o cheiro de cloro era gostoso.

- Vem, quero te apresentar a minha mãe e ao meu pai. - Michael foi me arrastando até uma das mesas que cercava a piscina. Tinha um casal que conversava animadamente sobre algo, quando nos aproximamos a mulher da qual sabia apenas o nome se levantou e me abraçou. Sua pele era bem mais escura que a de Michael, seus cabelos negros e pareciam ter sido tingidos, me lembrava uma índia, enquanto o pai de Michael era negro, barbudo e sorridente.

- Mãe e pai. Esta é a Melanie, ou Mel. - Fui abraçada por ambos, e tentei passar uma imagem de garota confiante. Sorrindo sempre e acenando para todos que me olhavam e tentavam entender quem eu era.

- Quando Michael disse que você viria e disse que você era bonita, fiz as contas. É difícil ouvir o meu filho dizer isso. - Mônica era carismática, falava alto e sempre que podia ela me abraçava e contava piadas. Enquanto Marcus, pai de Michael estava sempre tirando sarro de algo ou alguém, ele me lembrava muito o filho, e ria de tudo, até ver o resto dos seus filhos chegarem. Seria estranho me ver com quatro filhos homens e nenhuma menina pra mim mimar e ser mimada, sempre ouvia dizer que garotas são mais próximas das mães e as amam ainda mais, e as mães nunca devem se sentir sozinhas por isso.

- Vou considerar como um elogio, senhorita Mônica.-  Michael andava de um lado para o outro na busca de dar assistência. Correu e abraçou um dos irmãos do qual gritou por "Tae", e me apresentou cada um deles também, que estavam com suas respectivas mulheres ou namoradas. Todos eram bem diferentes um do outro, e não sorriam com tanta frequência, eram sérios e se mantinham na deles, embora suas tias, tios, avôs e primos estivessem sempre tirando sarro de algo ou comentando sobre suas vidas e seus dias, eles apenas respondiam o necessário e bastava. Dos irmãos que havia mais me identificado foi um dos gêmeos, que se sentou ao meu lado e comentava sobre as burradas que o irmão mais novo fazia. Como Michael era teimoso e não dava o braço a torcer quando necessário, como sempre estava tropeçando ou contando alguma piada estúpida no momento errado. Sabia que era bem diferente de Michael e mesmo que não tivéssemos nada confirmado, me via como sua namorada, e já fazia previsões de como seria estranho ver as pessoas apontarem pra gente e mostrar as nossas diferenças. Seja de idade, gosto ou jeito.

Não que me importasse, mas achava que as diferenças poderia ser considerado algo bom, fundamental, que graça seria se gostássemos das mesmas coisas e fôssemos iguais em tudo?

- Pode me dizer aonde fica o banheiro? - Cutuquei Michael assim que ele passou correndo por mim.

- É só subir as escadas e seguir o corredor até o final. - E sumiu. Sempre me perdia quando seguia o GPS das pessoas e ainda assim tentei. Entrei de volta pra casa e subi as escadas assim que encontrei. Me espantei com a quantidade de quadros que tinha espalhados pela casa, e que boa parte tinha sido pintado por Mônica. A casa toda estava vazia, e as portas estavam fechadas, o que piorava a minha descoberta pelo banheiro. Abri algumas e me deparei com quartos vazios e um deles apenas todo bagunçado, sabia que era de Michael pelo perfume e pelas janelas abertas. Tinha tanto roupa jogada e esparramada pelo chão como caixas de bolacha, cereal e outras coisas das quais não identifiquei.

Abri a porta ao lado e me deparei com o que parecia ser um escritório, o que sabia, era de Marcus. Não havia foto ou qualquer outro detalhe ali dentro, mas sabia que somente os homens tinham escritório e salinhas em especial para eles pararem e refletir e dizer "Epa, tem algo errado". Fui entrando devagar no cômodo pouco iluminado, tinha uma mesa enorme e repleta de papéis mais tudo bem organizado, além de ferramentas num canto da sala, e um único porta retrato sobre a ponta da mesa, onde toda a família estava unida, os quatro filhos e o casal unido abraçado e sorrindo. Como se a separação não tivesse lhes causado qualquer dano, apenas unido eles ainda mais. Suspirei por um momento ao lembrar que em casa tínhamos uma foto em família também. Onde meu irmão ainda era um bebê, Beatrice tinha a minha idade, e eu, uma anã de jardim. Meus pais mesmo com três filhos souberam dosar a atenção a todos, não fazendo com que filho algum sentisse ciúme um do outro ou precisasse atormentar os outros por querer o amor dos pais. Imaginava como era as coisas na casa de Michael.

Os filhos já eram grandes e vividos, tinham suas vidas por isso a quantidade de quartos vazios, e Michael era o filho mais novo da casa, e visivelmente era o "bibelô" da família. Todos o amavam, o considerava engraçado, extrovertido e com certeza era o orgulho do pai, que o olhava com uma paixão incondicional. Mas em meio a tudo isso eu conseguia perceber as rachaduras em torno da família. Mesmo que tentassem cobri-las, era inevitável não perceber. Os pequenos fragmentos de pó se despregando, e eles continuavam disfarçando, que não era nada, varrendo como sempre. Balancei a cabeça como se aquele pensamento fosse despencar pro lado e eu fosse me esquecer dele. Era uma boa pauta para quando me deitasse, não pra agora. Toquei o interruptor e as luzes do escritório se acenderam, e tive a oportunidade de ver como ele era maior do que meus olhos podiam ver e até me assustei. Me lembrava uma sala de aula, luzes nos tetos brilhavam e davam um ar misterioso, além das paredes pintadas em tons vermelho vivo e chapiscadas, encontrei diversas armas penduradas e emolduradas com orgulho, com datas assinadas em dourado. Tudo caprichado e organizado, além de não existir um fiapo de poeira em nenhuma das armas. Quis tocar em uma delas mas não o fiz apenas contive em olhar. Marcus não tinha jeito de caçar, mas tinha uma espingarda de canos sobrepostos e uma Besta pendurada que me chamou a atenção e me perdi no tempo, vendo as flechas fixas e alinhadas com tamanha perfeição que acreditava que um sopro meu fosse capaz de dispará-la. Fui me afastando aos poucos até trombar com uma mesinha de canto, onde vários potes de conserva estavam espalhados sobre a madeira antiga e tingida. Boa parte dos líquidos dentro dos potes estavam esverdeados, num tom estranho e que dava nojo, mas nunca me importei e nunca tive nojo de quase nada, só nos momentos inapropriados. Em um deles tinha o que parecia ser um animal, ou parte dele num líquido esverdeado. Deveria estar lá a anos.

Além de várias borboletas penduradas e coladas em Poliestireno mais conhecido como isopor, só que algo me fez aproximar e até forçar ainda mais a vista. Uma caixa de madeira com a tampa de vidro, onde continha o que parecia ser presas, mas a data entalhada na caixa não consentia com o século em que vivíamos, XVIII. Nunca havia levado a sério demais os contos voltados para os velhos vampiros, nem mesmo capacidade para ler e assistir ao filme Crepúsculo eu tive. Mas parei para imaginar diversas vezes como seria se todos pudessem ser algo, eu adoraria ser uma mistura de bruxa e vampira, e muita coisa faria mais sentido para mim.
- Aqui não é o banheiro. - A voz de Michael me deu um susto que jamais esqueceria. Meu coração estava prestes a saltar pela boca quando olhei para trás e vi ele de braços cruzados para mim, mas ao invés de estar sério e demonstrar querer chamar a minha atenção ele apenas sorria de canto. Se aproximando de mim e me encurralando numa das paredes do escritório.
- Me desculpa. Fui abrindo porta por porta e acabei me interessando pelo escritório...sabe como é, coisas velhas, armas, garotas amam isso. - Ironizei. E ele percebeu. Michael segurou as minhas mãos e encostou elas em seu peito, me dando a chance de ouvir seu coração palpitar mais rápido. Seus olhos estavam tão fixos em mim que me sentia tão constrangida, que fui capaz de desviar por um momento mais logo encará-lo como se nada tivesse acontecido.
- Meu pai caçou por um tempo. Mais parou após eu nascer. Porque a minha mãe não achava certo, e porque também quase foi preso. A caça em Paraíso é proibida. - Sussurrou, aproximando e roçando seu nariz na minha bochecha. A pele dele era quente, e pulsava em contato com a minha. Fechei meus olhos e tentei me concentrar.
- Eu imagino que sim. Caçar veados, coelhos e qualquer outro animal que seja, é complicado. - Não foram bem as palavras que eu queria dizer, mas eu disse. E ele apenas riu baixinho próximo ao meu ouvido.
- Ele sentia prazer em ver o animal em euforia, o som do tiro o instigava, a morte o excitava.
- Isso daria um belíssimo trecho de livro. - Fui me afastando de Michael até estar ao lado do seu corpo e respirando fundo. - Pode me mostrar a porta certa?

* * *
Os pais de Michael agradeceram a minha ida a sua casa, em principal adoraram o macarrão com queijo bacon do meu pai, e anunciaram que se apaixonaram pelo seu tempero natural. Coisa que fazia as pessoas estranharem, boa parte dos temperos, nós tínhamos no quintal de casa. Eu gostava de me considerar natural. Estava pensando até também em me tornar vegetariana, e após aquele assunto mais cedo sobre caçar, excitar e instigar, estava tendo mais certeza ainda que era melhor viver de legumes e peixe. Não era tanto sofrimento e era bem mais delicioso.

Estava no carro com Michael em frente a varanda de casa. As luzes ainda estavam acesas e sabia que papai estaria preocupado pelo meu horário de volta, já que era um simples almoço e não o dia todo. O celular eu havia deixado em casa e nem mesmo a preocupação de pedir o telefone emprestado para avisá-lo eu tive. Mas era a primeira coisa de errado que eu havia feito, sabia que ele entenderia embora fosse puxar a minha orelha. Ele tinha Beatrice que também teve a minha idade e sabe perfeitamente como é ser pai de duas garotas, e logo seria Pedro, causando ainda mais por ser homem.
- Agradeço pelo convite pro seu almoço. Sua família é encantadora. - Falei. Vendo Michael dar de ombros por um momento como se eu soubesse, o que me fez rir.
- É difícil os meus pais se juntarem para alguma comemoração. Boa parte das vezes quando unimos todos os tios e tias, primos e avôs, acaba surgindo problema. Gente jogando na cara um do outro algum acontecido do passado, até entendo, eles tem seus motivos. Acho que não brigaram porque eu te convidei.
- Não sabia que era capaz de conter os ânimos das pessoas.
- Você é capaz de muita coisa, só não descobriu isso ainda. - Engoli em seco. Michael vinha me pegando desprevenida com suas frases intensas e isso não me assustava, só me assustava o fato de amar cada uma delas, e sempre imaginar que tem alguma intenção por debaixo delas.
- Boa noite, Michael. - E fui abrindo a porta do carro para poder descer. Mas fui puxada de volta para dentro e enlaçada em uma chama de beijos e carinhos que ele me deu sem medo ou pressa. A porta foi fechada e tudo escureceu em torno da gente. De repente era só nos dois e mais nada. Além do motivo é claro de eu aceitar que meu coração batesse mais forte por alguém. Eu era nova demais para ter estes pensamentos, mas li livros o bastante para saber que após uma batalha de paixão, o coração sempre sai ferido, e as vezes, quando não se volta inteiro, acaba morrendo de paixão e amor.

Parte Quatro - Fora do Ar.

Pela enorme da janela do meu quarto eu vi as luzes se aproximando. Elas eram intensas e seriam capazes de queimar a minha retina, mas não me importaria de não ver nunca mais o que fui capaz de ver naquela noite. Mamãe sempre soube ensinar a todos nós os valores, inclusive o quanto deveríamos ser fortes para o que viesse acontecer. Como ela estaria adivinhando? Pedro estava nos meus braços dormindo e papai lá de baixo gritava feito uma criança que acabará de perder seu brinquedo precioso. Estava tentando me colocar em seu lugar mas era algo difícil e que eu mesma não conseguiria nem se de fato incorporasse o homem frágil que só quer ter notícia da mulher, que sumiu sem deixar nada, nenhuma pista, nada. Deixou apenas um rastro terrível de desolação.

Havia aprendido uma técnica quando mais nova que nestes momentos é bom a gente respirar fundo e fechar bem os olhos. E focar em alguma outra coisa. Era o que estava fazendo, mas porque não funcionava? Ouvi os policiais lá debaixo anunciarem que aquele pedaço dentro da caixa, aquele antebraço, era da minha mãe. Mas nada era confirmado. Só que o desespero do meu pai ficou mais intenso ao perceber que ainda usava a mesma aliança da qual ele deu para Sara. A mesma pedra brilhante agora estava fosca, preenchida por um sangue que deveria ser da minha mãe. Quem é que estivesse fazendo isso tinha a intenção de atingir a todos, e conseguiu.

Sabia o quanto meu pai era teimoso e correria atrás não só de descobrir quem estava fazendo aquilo, mas me espantei ao conseguir fazer Pedro dormir um pouco que fosse e desci um pouco as escadas. Dali eu via meu pai sentado no sofá, desolado. Com a cabeça entre as mãos. Seu rosto estava mais pálido que o normal e seu cabelo todo desgrenhado, não conseguia ver Beatrice mas numa hora destas ela deveria estar lá fora, tentando dar qualquer notícia aos polícias ou até mesmo, fugido. Seria melhor assim, fugir.

- Estaremos investigando, senhor. Esperamos trazer notícias o mais rápido possível. - Não era as palavras mais confortadoras que alguém poderia ouvir mas meu pai também não respondeu, como fingiu estar desligado. Ele estava se desligando. Se desligando da humanidade temporariamente.

Os polícias aos poucos foram juntando suas coisas e todos eles saíram de cada cômodo debaixo da casa, mas boa parte da cozinha. Pareciam curiosos, um pouco assustados. Considerava que não fosse normal um caso como aquele acontecer em Paraíso, e este seria o primeiro. E eu, seria o comentário da escola amanhã.

* * *

Normalmente quando estamos em luto, ficamos em casa até nos recuperarmos de uma grande perda. Mas tudo estava normal quando me levantei e encontrei papai fazendo seu café na pia, Beatrice arrumando a mochila de Pedro e já com o uniforme. Eles pareciam despreocupados e até mesmo me fez pensar que eu estivesse sonhando, ou quem sabe tivesse imaginado coisas? Não fazia ideia, talvez se eu me beliscasse eu voltasse a realidade mas acredite, não adiantou.

- Esta pronta? - Sussurrou Bea, me olhando parada e prendendo os cabelos rapidamente. Eles continuam um emaranhado de fios, até a sua aparência antes bonita se esvaiu. Era triste, mais era compreensível. Eu também deveria estar assim mas porque não estava? Suspirei e concordei antes de ir pegar a minha mochila e prender os meus cabelos no caminho pro carro. Havia chovido boa parte da noite e Pedro tinha passado todo o seu tempo resmungando palavras indefinidas para mim, e eu preferia nem mesmo me focar nisso.

Beatrice deixou Pedro no seu colégio anunciando que papai não o levaria pelo fato de ter que ir a delegacia agora de manhã, e o garoto ainda não sabia de quase nada do que aconteceu. Eles achavam isso, mas eu sabia que era diferente. Crianças entendem tudo, tudo mesmo. Afinal, já fui uma e sabia e entendia a mente do meu irmão. Em todo o caminho a minha irmã se manteve quieta, focada na estrada e as vezes me olhava como se quisesse entender o que eu pensava. Mal imaginava ela que eu pensava nela, que eu queria entender ela mas não conseguia. O que de fato ela sentiu ao abrir a caixa e ser recebida daquela forma? De ver o braço que a segurou quando mais nova? Sangrento, massacre, derrotada, Beatrice.

Nos corredores as pessoas me observavam mais do que o normal. Olhavam diretamente no meu rosto como se fosse eu quem havia tido a capacidade de arrancar um braço da minha própria mãe e enviado para casa. Quem teria feito isso tinha sangue frio o bastante, e eu não tinha. O Sangue que corria dentro de mim era quente, levemente grosso, adocicado e com gosto e cheiro de ferro do qual eu sentia nojo. Mais bombava dentro de mim e me mantive firme e de pé, para continuar andando naquele corredor frio e sem escrúpulos.  Eu queria encontrar a minha sala, mas também havia esquecido meu papel de horário em casa e isso poderia se dizer que era uma salvação pra mim mas não seria. Encontrei com Patrícia que veio me abraçar como se eu fosse sua amiga mais intima, e eu quis sorrir e retribuir aquele carinho súbito, mas não tive capacidade, apenas fiquei parada.
- Estive preocupada com você. Esta precisando de alguma coisa? - O que ela sabia?
- Na verdade eu preciso ir pra sala, mas esqueci meu horário então não faço ideia de qual seja a minha primeira aula. - Sussurrei. Patrícia concordou por um momento e foi me arrastando pelos corredores, me obrigou a descer as escadas e a entrar no mesmo corredor de semana passada. Com cheiro de tinta fresca, e com o som de nossos passos a cada deslize no chão encerado e brilhante. Ela me acomodou na cadeira de semana passada, e se sentou bem ao meu lado, parecendo tão protetora. Mas eu via em seus olhos que ela de fato estava preocupada, o que era bom mais desnecessário. Não precisava de ser assim. Não queria que fosse assim.
- Michael esteve preocupado com você durante o fim de semana todo. Me ligou todos os dias querendo saber se eu tinha notícia suas. - O que era mentira. Como Patrícia saberia de algo sobre mim? Sendo que quem tinha o número de casa, era ele mesmo? Bufei por um instante antes de encarar a garota ao meu lado e sorrir. Sabia como a minha face estava vermelha. Eu me sentia quente. Quase a mesma sensação de febre.
- Depois..eu..falo com ele. Obrigada. - E novamente Patrícia se calou. E foi assim durante todo o resto do dia.

* * *
No intervalo encontrei um refúgio e tanto. A Biblioteca. Ela era silenciosa, quente e aconchegante, quase me lembrava meu quarto, só faltava uma cama com lençóis cheirosos. Conheci a senhorita Marie. Antiga bibliotecária da cidade da qual todos respeitavam, já que seu legado em Paraíso era enorme, e o fardo que ela carregava, ainda maior. Ela era comunicativa embora as placas em torno da gente pedissem silêncio. Marie cheirava a talco de flores, seus cabelos eram mesclados de branco, sua pele morena e com pouquíssimas rugas. Queria saber seu truque para poder chegar aos 78 anos, com uma beleza tão diferenciada. Suas roupas eram simples e seu modo de dizer era ainda maior.
- Vim de Londres quando ainda era pequena e até hoje trago meu sotaque. Trago-o por querer lembrar da época boa em que vivi. - Vi como seus olhos castanhos brilharam para mim ao comentar sobre sua vinda para cá. Era bom ouvir outras histórias. Outras pessoas, assim, não me sentiria diferente.
- E porque não ficou aonde estava? - Disse assim que Marie se virou de costas para mim em busca de uma pilha de livros. Ela soprou a poeira depositada por mim devido ao tempo. E me respondeu:
- Porque Paraíso é uma prova de vida. Meus pais na época acreditavam que seria diferente de tudo. Um lugar mais calmo para os filhos. Que estudariam e se tornariam algo. Devo considerar bibliotecária uma profissão?
- Sim. Independente do que faça ainda é uma profissão. Uma profissão muito legal. - Marie riu e o som da sua risada ecoou nos corredores.
- Inteligente da sua parte acreditar que em Paraíso, somos algo. - E então me deixou sozinha no meu canto. A biblioteca era enorme.

Lembrava-me o refeitório da escola pelo seu tamanho. Mas ao invés de mesas e cadeiras, tias e alunos gritando. Era preenchida por estantes enormes que encostavam no teto, abarrotadas de livros enormes, desde os antigos até alguns mais recentes - que devem ser pesquisados com cautela caso procure-os -. Nos fundos haviam mesas redondas espalhadas pelo enorme "recinto". Mesas empoeiradas e cadeiras idem. Soube por Marie que a biblioteca havia ficado fechada durante um ano inteiro após uma briga, que causou o sofrimento de uma jovem que até hoje não tinha se recuperado do trauma. O que era péssimo, mas a reabertura daquele salão era algo perfeito para mim. Não era pelo fato da biblioteca cheirar a poeira e pinicar meu nariz, nem mesmo os espirros me incomodavam mais, o silêncio sarava-os.

Cheguei a pegar meu caderno de desenho e apoiá-lo próximo a uma das enormes janelas que iluminavam as mesas do local. Queria algo diferente e por incrível que pareça me sentia inspirada. Olhei de soslaio no relógio e percebi que ainda estava cedo. Daria para mim terminar meu desenho sem preocupação. Da janela eu tinha a visão de um campo aberto, o sol vinha de frente para mim. Num tom alaranjado sob os pequenos morros que cercavam a cidade, e que eu o considerava um péssimo meio de proteção. Apontei meu lápis e me concentrei. Meus olhos se fecharam por longos instantes até me ver iniciando riscos diversos no papel em branco. Seguia um ritmo lento e sem me preocupar com o que formaria, e até mesmo aos borrados que surgiam a cada esfregar de mão ou dedo, este era um risco que se corria ao usar um lápis 3B de ponta tão fina e delicada.
- Você desenha bem. - Alguém tirou a minha concentração. Me assustei ao olhar para trás e ver que era Michael. Seu rosto despreocupado me fez fungar e ir fechando o meu caderno, guardando meu lápis, borracha e todos os outros objetos que me cercavam. Meus dedos já estavam pretos quando eu olhei para a minha própria mão. Era inevitável dizer que aquilo me consideraria uma garota suja, mas eu chamava de arte e esforço, e os dedos vermelhos e manchados de preto, não eram nada demais.
- E você não deveria estar aqui, falando. - Apontei para um dos panfletos colados na parede que pedia silêncio enquanto me jogava na primeira cadeira que eu vi em meio a um punhado de livros que Marie me trouxe, achando que me interessaria por contos antigos ou livros de poema.
- Dona Marie não se importa de ver alunos conversando por aqui. Afinal, a um ano não recebe visitas. Pelo livro preto, você é a primeira a vir aqui. - Devagar Michael foi se sentando ao meu lado. Seus olhos como sempre tão fixos em mim me deixavam perdidas. Seu corpo cheirava a mesma colônia que sua blusa de frio tinha, que por sinal deveria devolver mas não conseguia, não queria. Durante estes dois dias, dormia com o cheiro de Michael, e sonhava com ele me protegendo.
- Acredito que se importe sim. Vazia ou não ainda é uma biblioteca. - Ele não disse mais nada, apenas arqueou um dos lados da boca. Sabia que surgiria um sorriso dali, que não veio. Até ele tomar as minhas mãos e segurá-las para si. Foi uma ótima maneira de me fazer encará-lo nos olhos, coisa que não tinha o costume, e odiava.
- Eu vim aqui pra falar com você sobre o acontecido na sua casa. Sinto muito mesmo!
- Quem deveria sentir sou eu. Não se preocupe. Esta tudo bem..
- Pelos seus olhos não. Você chorou? - Não respondi. - Me diz...
- Não...
- Mas deveria. Chorar limpa a alma.Por mas que eu não queira te ver chorar, mas se te fazer bem, eu permito. - Abaixei por um instante a minha cabeça. Queria ter tempo de refletir sobre o que estava acontecendo ali dentro. Mas o tempo resolveu parar bem agora, e nada me tirava da cabeça como Michael conquistou algo que nem mesmo a minha irmã conquistou durante anos. A minha confiança. Ele conseguiu me domar de tal forma em que ele me puxou tão forte contra seu peito. Ele me abraçava como se eu fosse uma criança ou entendesse perfeitamente o que tivesse acontecido ali, ou como se fosse o culpado. Eu poderia entender a mente de um assassino. Mas Michael não era um, poderia ser considerado por mim um amigo, e agora, protetor. Eu nunca havia tido algo assim, nunca havia tido ninguém próximo o bastante para se preocupar comigo, ou para me olhar nos olhos e pedir que eu chorasse, porque era isso que eu precisava.



Na hora da saída, Michael fez questão de me acompanhar até a caminhonete da minha irmã. E enquanto não me viu entrar no banco de carona e acenar para ele, não subiu em sua moto e foi embora. Coisa que deixou Beatrice desconfiada, embora distante e que não tenha aberto a boca pra falar absolutamente nada para mim. Nem mesmo para chamar a minha atenção pelo fato de me apegar alguém numa situação dessa.

Quando chegamos em casa, papai já estava lá só que em seu escritório. E não teria percebido isso se eu não tivesse passado pelo corredor que dava para o meu quarto. Geralmente o escritório estava sempre fechado, nem mesmo mamãe entrava lá para limpá-lo, porque achava desnecessário, já que papai não entrava lá, e só havia papéis antigos, escritura da casa, documentações e etc. Resumindo, coisa de adulto. Tomei um banho rápido e prometi para Bea que cozinharia pela primeira vez. Estava com fome e ao mesmo tempo cansada, e ainda assim tive forças o bastante para preparar uma macarronada qualquer e deixá-la no fogo, e não esperar ninguém para sentar e comer. Nunca tive problema em comer sozinha.

Logo após a janta eu me deitei e Beatrice chegou com Pedro. Que me abraçou e foi se cuidar. Com certeza me deixaria em paz até a hora de dormir, já que estava se acostumando com a ideia de ouvir histórias todas as noites. E eu amava isso. E me fazia imaginar se seria diferente quando tivesse o meu próprio filho. Iria amá-lo e protegê-lo. Contar histórias diversas e vê-lo sonhar. Vê-lo se imaginar dentro daquela história, sendo o personagem principal matando o vilão.

Tentei dormir por um momento mas o sono não vinha, embora meus olhos estivessem pesados o bastante. Era como se a minha cabeça não estivesse cansada ou quisesse se desligar por algumas horas. Rolei diversas vezes na cama e me lembrei de Michael. Como seu sorriso era reconfortante e sensível. Como as pessoas gostavam dele mas ao mesmo tempo, queriam se manter longe dele, e seus únicos amigos, era o grupo preenchido por Patrícia, que mais se parecia sua irmã do que amiga. O que deveria ser algo legal. Ainda tinha o cheiro dele da na minha camisa do colégio, e não me preocupei em cheirá-la assim que tirei e me lembrar como senti vontade de chorar ao ser abraçada por ele hoje mais cedo. Me coloquei por um momento no lugar de Sara, a minha mãe pra entender o que ela diria dessa situação e desse relacionamento novo que surgia.

Ela me permitiria a ficar próxima das pessoas, mas não o bastante para confiar nelas.

Parte Três: Contra o Tempo

Meu segundo dia na escola havia sido tranquilo, diferente do primeiro, não vi Jennifer em lugar algum e cheguei a cogitar a ideia que estava fugindo de mim ou planejando algum ataque surpresa. Patrícia esteve comigo o tempo todo e inclusive Michael, que passou algumas vezes perto de mim no corredor e sorriu feito um bobo, mas eu não retribui, não havia motivo para risos, nem mesmo suas piadas forçadas no intervalo, querendo quebrar aquela sensação tensa de que a qualquer instante eu iria fazer novamente a mesma pergunta: O que realmente aconteceu nessa cidade que ninguém me explica?

Durante toda a semana eu prometi a mim mesma que daria um jeito de permanecer até mais tarde na escola para fazer pesquisas. O que era evidente, causaria uma confusão entre mim e Beatrice, que agora dava uma de mãe, jurando que quer apenas me proteger acima de tudo, só que com toda essa pressão ela apenas me afasta mais e mais. Fiz inscrições para dois "projetos" que se iniciaram na escola, um deles era de teatro, que ainda não havia nada planejado, nem personagens criados ou já direcionados para cada um dos participantes. Mais Michael participaria também e inclusive, tentou puxar assunto comigo, responder eu responderia, mas também não queria dar assunto, tinha outros planos e ele assim como qualquer um seria capaz de me atrapalhar. E o outro projeto era um grupo de leitura e fotografia, da qual me adaptei muito bem desde o primeiro dia, onde mostrei as minhas fotografias e todos ficaram impressionados pela qualidade e como mesmo com as mãos tremulas, consegui captar tão bem sentimentos e momentos que poderiam passar num piscar de olhos.

Não expliquei mas sofro de reumatismo, além da dor aguda que resolve me ataca em boa parte do dia, as minhas mãos tremem o bastante para que não tente segurar uma xícara por muito tempo. Um copo com leite se tornaria um milk-shake, era exagero eu sabia, mas meu irmão mais novo costuma me repetir isso toda vez em que derrubo algo. Pelo menos tenho algo a que culpar. Meus pais já me levaram no médico, mas preferi não tomar os remédios, incomoda mas não o bastante para que fique dopada de tanta medicação. Mamãe foi contra, papai também mas no fim, guardava as minhas reclamações e eles até se esqueceram. O que eu também não entrei em detalhe no grupo que me acolheu com todo carinho e boa parte dos membros eram garotas, uma delas apenas era mais velha, as outras, tinham a mesma idade que eu. Eu ouvia de tudo um pouco ali dentro daquela sala com um tom engraçado.

Que variava entre o laranja e o cinza, além do cheiro intenso de poeira que só aumentava cada dia em que me infiltrava ali para falarmos sobre fotografia, discutirmos sobre tudo um pouco. Essa era a intenção do grupo, debater e ensinar as outras pessoas que gostavam de ler e fotografar, mas estavam no começo, ou tinham a intenção de iniciar algo, mesmo que não fosse nada sério. Vi pessoas fotografando melhor do que eu e com livros novos em seus braços na sala, a principio as rotularia como ricas, boas de vida, mas pelo contrário, assim como os meus eram ganhados de familiares já que os pais não davam tanta importância a paixão pela leitura e fotografia.

Eu não tinha tantos livros também, a maioria eram ganhados da minha avó e da minha tia, estavam empoeirados na estante montada pelo meu pai sobre a minha cama. Além de Patrícia havia criado um vinculo rápido com outra garota conhecida como Brooke, só que seu verdadeiro nome ainda era um mistério para todos no colégio desde o momento em que ela surgiu lá. Até me sentei com ela na hora do intervalo na intenção de interagir, todos eram diferentes da mesa de Patrícia, não tinha tanta aquela interação e os assuntos em particular, eram tristes e me deixaram deprimidas a ponto de abandonar o refeitório antes mesmo de tocar o sinal.

Aprendi muita coisa só nessa semana. Uma delas era que todos estavam sempre com pressa, e sempre quando dava o horário de ir embora, não sobrava ninguém até anoitecer, a não ser Michael, que por sorte eu peguei seus horários e decorei cada um deles e sempre que podia, fugia, não era por nada mas seu olhar era penetrante e era como se ele me lesse profundamente e por incrível que pareça, ele percebeu a forma com que sempre fugia dele, tanto que estava vindo na minha direção enquanto andava o mais rápido possível. Meus pés se enrolaram um ao outro no instante em que ele foi mais rápido e me segurou. Foi como se algo tivesse me empurrado. Eu sabia o motivo, era um misto interno de nervosismo, ansiedade e fraqueza, o que eu vinha sentindo com frequência. Mas eu sempre soube disfarçar bem. Eu sempre fui uma garota considerada pelos outros franzina. Com aparência de doente e de rosto sardento e engraçado. Sobrancelhas grossas e bem desenhadas, lábios firmes e com contornos perfeitos. Mas mesmo assim nunca fui chamada a atenção pela minha aparência, e como dizia Beatrice.

- Somos comuns demais! - Foi o que eu pensei no momento em que Michael me ergueu e me fez voltar a realidade. Fui me recompondo o mais rápido possível e ajeitando minha saia e até a meia que se enrolou toda nas minhas pernas. Quando pude olhar melhor em seu rosto ele parecia despreocupado, mais suas bochechas estavam levemente avermelhadas assim como o nariz, o que jurei ser devido o frio que era dentro da escola, e até mesmo pelo frio que fazia nas ruas. Estávamos saindo do outono e direto para o inverno, que costumava ser intenso aonde morava, mas por aqui eu não saberia diferenciar, todos os dias eram frios, saindo sol ou não.

- Você esta bem? Esta pálida. - Michael estendeu uma das mãos para tocar a minha testa só que me afastei antes dele encostar um dedo em mim, e ele pareceu surpreso. Eu era difícil de entender o motivo das pessoas desejarem tanto me tocarem. Nem mesmo meus irmãos faziam isso, quem dirá um estranho? Mas as pessoas não sabiam disso e eu precisa aprender e compreender que elas não sabem disso.

- Eu, eu estou bem Michael. E quanto a minha palidez, já deveria ter se acostumado com isso. - Ajeitei a mochila sobre os ombros e comecei a caminhar rumo os degraus que dava ao primeiro andar. Ele vinha atrás num passo mais lento, o que com certeza dava a chance dele me observar. Eu deveria parar e olhar em seu rosto, mas não o fiz, apenas continuei, expirando e inspirando, o que era fácil para mim, para todos.

- Espera ai. Quer comer alguma coisa comigo? Hoje é sexta-feira e tem umas lanchonetes legais por aqui abertas. - Parei abruptamente no caminho, o que fez ele parar alguns centímetros atrás de mim. As pessoas não tinham o costume de me convidar para sair. Sempre fui de andar com Beatrice e Pedro, e às vezes com os meus pais, o que era uma atividade rara. Sabia que não teria problema eu sair com Michael e voltar logo para casa, mas poderia preocupar ainda mais meu pai e a minha irmã com meu sumiço. Olhei por algum tempo no rosto do garoto parado a minha frente. Que trajava uma camisa branca com um suéter sem mangas de cor azul, sua gravata estava levemente desfeita, e a calça antes sempre lisa, estava toda amarrotada. Suas mãos se moviam dentro dos bolsos e seus pés batiam no chão, ele parecia ansioso e esperava um sim vindo de mim.

- A minha irmã deve estar me esperando pra irmos embora. Posso deixar para outro dia? - Seu cenho se franziu quando terminei de falar, e ele sorriu tímido, coisa que ele não era e jamais seria, não com aquele olhar.

- Qualquer coisa eu peço pra ela. Prometo te deixar em casa antes das oito.Ainda vai estar claro, você sabe disso! - Engoli em seco e concordei. Vinha observando tanto o céu ultimamente que percebi o quanto demorava para escurecer em Paraíso. Decorei cada tonalidade, temperatura, onde os pássaros se acomodavam. Por fim, Michael foi comigo para o lado de fora da escola onde ainda havia alguns alunos além de nós e alguns carros parados no estacionamento, inclusive a caminhonete de Beatrice. Ela me esperava numa roda de amigos que ela havia feito e assim que me viu ela sorriu, mas fechou a cara no mesmo instante em que viu Michael comigo.

- Posso sair um pouco com ele? - Nunca havia pedido nada, não pra minha própria irmã e isso era estranho e ao mesmo tempo, constrangedor. Beatrice olhou para mim e para Michael por um longo instante até engolir em seco e se despedir de alguns colegas, mas ainda permaneceram parados ao seu lado três ou quatro garotas que observam a cena.

- Aonde vocês pretendem ir? Preciso saber pra contar pro papai, e outra. Hoje ele chega tarde, e não é por isso que vai aproveitar do momento. - Concordei e Michael tomou as rédeas, ficando um pouco mais a frente de mim.

- Eu quero mostrar pra ela alguns lugares da cidade. A gente acabou de sair da escola, é sexta-feira, tem algumas lanchonetes legais por aqui e achei que seria bom ela conhecer. Sua irmã é bem tímida. - Revirei os olhos quando entendi o que ele estava querendo fazer. Seduzir ou agradar a minha irmã que caiu perfeitamente na dele e sorriu, e parecia prestes a abraçar o garoto que antes a fez suspirar e dizer bem baixinho "Lá vem merda".

- Quero ela em casa antes das oito e meia, ok? - Michael concordou e segurou meu braço conforme fomos nos afastando da minha irmã e seguindo na direção da sua moto. Desta vez ele tinha dois capacetes e entregou um deles para mim. Com certeza havia dado carona para alguém para estar tão "protegido. Subi na garupa da moto sem frescuras e ele também se acomodou na minha frente, me deixando apenas com a sua mochila. Ele acelerou e tomou um longo caminho que antes só havia pego com Beatrice. Eram ruas com diversas saídas e boa parte delas não havia um movimento que fosse de carro a não ser motos, bicicletas e famílias. Boa parte das portas abertas eram de lanchonetes, sorveteria, cafeteria e bancas de jornais. Imaginava que todos frequentavam ali por tudo ser tão perto e familiar. Mas ainda assim não era ali que Michael iria me levar, e mesmo que eu tentasse adivinhar, para mim, era uma tarefa difícil por não conhecer nada nem ninguém, inclusive quem conduzia a situação.

* * *

Quando a moto parou eu desci o mais rápido possível e esperei Michael estacionar a sua moto em meio a vários carros parados em torno da gente. As ruas por ali eram diferentes e me lembrava alguns ponto de Paris e as casas que adornavam as ruas ruidosas pareciam as de Veneza. Só que sem a inundação e os barcos românticos. A principio estranhei o cheiro intenso de mofo, que fora substituído rapidamente por dois cheiros característicos, um deles era das flores das sacadas acima da gente, e o segundo cheiro era de molho de tomate.

- Vem, vou te levar a uma verdadeira pizzaria. - Novamente Michael tomou meu braço e foi me guiando em meio aos carros e pessoas. Ainda não achava que eu estava em Paraíso, porque tudo era diferente, desde o cheiro, as pessoas, e a quentura que era passada para dentro de mim e me fazia borbulhar intensamente. Michael me levou a uma pizzaria que ele jura para mim ser ponto de referencia na cidade, inclusive um pedido do qual eu não pude negar e tive que ser obrigada a pedir quando o garçom nos trouxe o cardápio e pedimos uma pequena porção de pizza de sardinha. Que era algo da casa, e era nada mais nada menos que uma assadeira pequena, com uma cobertura suculenta de molho de tomate, sardinha e outros temperos do qual eu reconheci na primeira mordida, além do picante realçado. A segunda coisa da qual eu experimentei foi o suco produzido pelo Chefe "Pasta". Que nos trouxe uma jarra cheia e trincada de tão gelada que o liquido dentro dela se encontrava. Não havia açúcar algum a não ser o doce do suco de uva com gás. As bolhas estouravam dentro da minha boca e Michael riu quando eu comentei a experiência, e ele disse se acostumar.

- "Pasta" é seu tio mesmo? - Comentei. Dando goladas na minha bebida e olhando Michael mordiscar seu pedaço de pizza. Quando ele limpou os lábios ele concordou.

- Minha família é da França. Ou melhor, meus pais. Eles vieram ter eu e meu irmão aqui, já tendo a minha irmã que cresceu e tem o sotaque francês melhor que o meu. "Pasta" é irmão do meu pai que deu a eles a ideia de se mudarem para cá já que a cidade era pacifica e poderiam criar perfeitamente três filhos. - De fato Michael não tinha sotaque algum. Sua voz era de alguém mais velho do que ele aparentava. Era grossa, definida, e ele diferente de mim, não errava ou arrastava uma palavra que fosse.

- Quer dizer que não teve tempo o suficiente para conhecer a França e suas iguarias? Veio conhecer apenas agora? Comendo a pizza do seu tio? Deve ser legal. - Sussurrei. Mordiscando o restante da minha pizza, até limpar meus dedos e suspirar, cheia.

- Não me lembro de nada da minha infância para ser exato. Não tenho lembranças da minha infância e nem mesmo de ter visitado a Torre Eiffel quando tinha 9 anos com meus pais.

- Sempre digo para a minha irmã que se não tenho lembranças da minha infância é porque ela não existiu...e se existiu, deve ter sido tão ruim que eu bloqueei todas elas para que elas não me afetassem na juventude. - Michael ficou me olhando surpreso. E eu corei, abaixando os olhos para o meu dedo que circundava a borda do meu copo.

- Satisfeita? - Assenti. Vendo Michael se ergueu e ir ao fundo da pizzaria cumprimentar e se despedir do tio, que acenou para mim e sorriu com seu enorme bigode, típico de um pizzaiolo. - Vou te levar numa sorveteria agora. Vem cá! - Segurando meu braço com firmeza, corremos até uma sorveteria logo na rua de trás da pizzaria. Tudo ali era baseado em becos bem iluminados e movimentados. Perdi as contas de quantas vezes me peguei pensando em voltar ali e fotografar tudo, porque era tanta novidade que a minha cabeça não conseguia mais assimilar mais nada e eu queria me lembrar de tudo aquilo, olhando as fotografias seria mais fácil.

Michael me fez experimentar o sorvete típico da cidade e o preferido dele. Iogurte com pedaços grosseiros de amora. Acreditem, era delicioso e não resisti, pedi por mais de tão bom que era. O doce do iogurte era quebrado graças ao azedinho da amora, que dava um tom arroxeado em tanto branco numa única massa.

- Desse jeito até o fim da noite eu vou estar enorme. - Ele riu. Me guiando em meio a uma subida estreita. Nos acomodamos em bancos frios enquanto tomávamos nosso sorvete em silêncio. Michael parecia entretido e animado. O que era difícil. Boa parte das pessoas deveriam se sentir entediadas com alguém feito eu, mas ele parecia despreocupado com a forma com que eu falava, e até mesmo, não conseguia me expressar.

- Se quiser amanhã te levo pra conhecer outros pontos da cidade. Você vai amar assim como aqui. - Sua voz quebrou o silêncio, e em meio as sombras eu vi como seus olhos brilhavam na minha direção e que seu sorriso era por um único motivo, eu.

- Tem problema se eu trouxe uma companheira minha?

- Não me importo. Mas quem seria? - Desta vez quem sorriu foi eu. Deixando de lado o meu copo que fazia meus dedos adormecerem de tão gelado que estava.

- A minha câmera. Quero fotografar cada lugar que você me levar. Quero voltar aqui também, se não for problema.

- Eu te trago. Amanhã então? - Não sabia se seria uma boa ideia confirmar algo, ainda mais com tudo o que estava acontecendo dentro de casa. O desaparecimento de mamãe, a minha irmã sozinha, Pedro e meu pai. Desolado.

- Vamos ver. Qualquer coisa eu te ligo, te passo meu número de casa. E você também sabe bem aonde eu moro. - Ele ficou me encarando por um tempo até concordar e ir se levantando.

- Claro. É melhor irmos indo. Caso contrário a sua irmã irá me capar.

* * *

Não era porque ainda estava claro que não estava frio. E acredite, estava intenso a ponto de eu bater o queixo até chegar em casa. Embora Michael tenha teimado comigo e enquanto não tinha aceito a sua blusa de frio - que não adiantou muito - ele ficou no meu pé. Ela era quente e tinha seu cheiro e não me incomodaria em dormir com esse perfume tão doce, tão...menino.

- Você tem um caminho longo até sua casa. - Ele mesmo não foi capaz de me levar até a varanda de casa. O que me tirou totalmente do foco e me deixou enfurecida. Acabei de ter um encontro e nenhum beijo vai acontecer? Que estúpida.

- Eu sei. Obrigada pela noite, e amanhã conversamos. - Estava prestes a virar as costas e pegar meu caminho, quando ele me chamou de volta. Pela escuridão que preenchia a gente eu vi seu sorriso, e como ele me olhava como se fosse me capturar e não me soltar nunca mais - me permitiria a isso sem problema algum, sendo ele...sendo Michael -.

- Até amanhã, pequena. - Me derreti. Seu corpo todo inclinado sobre a moto. Seus braços definidos pela força da qual ele retirava lá do fundo para impulsionar a moto a tomar seu caminho me fez gemer baixo e despertar daquele sonho bobo. Mesmo quando ele ajeitou o capacete e me tirou toda a visão do seu rosto moreno, eu tive certeza que seria capaz de sonhar com aquela cena. Diferente dos pesadelos que costumava ter, seria a melhor noite de todas. I Do!

Deixei a minha mochila sobre o sofá de casa onde eu simplesmente me joguei. Meus pés estavam duros de tão frio, e a ponta dos meus dedos estavam roxos. Adorava o frio, mas também não era adepta e nem estava preparada o suficiente para tanto frio. Inclusive nas noites, que costumava ser um inferno, agora, sabia bem como era. Beatrice vinha da cozinha com seus olhos enormes e se acomodou na poltrona de frente ao sofá em que eu estava. Parecia curiosa e a espera de qualquer comentário que fosse feito por mim sobre esse encontro e até sobre Michael, coisa que eu não faria e nem mesmo era obrigada.

- Papai ainda não veio, por isso a porta ficou destrancada.

- Deveria tomar cuidado com isso. Não é porque moramos no meio do nada, que estamos sozinhas. - Esbravejei. Olhando para a minha irmã que revirou os olhos e jogou as pernas sobre a mesa de centro.

- Eu ainda estou acordada. Coloquei o Pedro pra dormir agorinha. Fiz sopa!

- É só isso que você sabe fazer mesmo. Idiota! - E fui me levantando o mais rápido possível, podendo fugir de uma bota que voou bem na minha direção enquanto subia as escadas que dava pro meu quarto. Precisava tomar um banho mas a preguiça me dominava tanto a ponto de eu querer apenas dormir, e rezar. Rezar para que a mamãe voltasse logo e que tudo se normalizasse. Rezar para que o papai voltasse a ser aquele homem ativo que era semanas atrás. Rezar para que Pedro não sentisse tanta a falta e a necessidade da mãe por perto, o que até eu, que era uma garota, e tinha idade o suficiente, sentia falta, e ele? Tão pequeno? Beatrice tentava disfarçar e dar uma de dura, mas era inevitável não perceber suas olheiras, como sua aparência estava desleixada. Coisa que quase nunca era aparente, e isso me deixava bem claro que a situação estava de fato bem feia.

No fim, me enfiei debaixo do chuveiro após me despir e fiquei lá um curto período. Lavei meus cabelos e os penteei ali mesmo para poupar tempo. Coloquei meu moletom velho, e ajeitei as meias nos pés para então descer e ir na cozinha em busca de fazer meu chá. Mais uma lembrança típica da minha mãe me veio a cabeça. A forma com que ela nos fazia dormir tranquilamente com suas xícaras de fundo amarelo, e o cheiro de erva-doce e cidreira. Fiz ambos numa xícara e fiquei olhando por algum tempo pela janela da cozinha como a névoa ia preenchendo o gramado em torno da nossa casa. Era quase como se fôssemos invisíveis aos olhos do mundo, e dali não era notável a casa "vizinha", se não fosse a luz laranja bem distante. Ouvi ruídos no forro de casa e nem me surpreendi quando a porta foi batida duas ou três vezes. Beatrice não demorou a vir, gritando que seria o papai quem esqueceu das vezes e não poderia abrir, sendo que ela já estava aberta.

Mas o que eu ouvi foi algo totalmente diferente e inesperado. Que arrepiou todos os pelos do meu corpo e me fez correr até a sala, onde a minha irmã gritava sem parar e apontava pra caixa. Porque no fundo eu sabia que eu encontraria algo assustador ali dentro? E pelos olhos marejados e esbugalhados de Bea, soube que era algo assustador e era da minha mãe. Da Nossa mãe.

Parte Dois: Estrago Emocional

Acho que já fui vítima de bullying uma ou duas vezes quando era mais nova. Mas a desculpa de todos era sempre a mesma, inclusive a de que eu havia feito por merecer. As pessoas tiravam uma com a minha cara, falavam mal da minha família, da Beatrice e até do meu irmão, por sermos um tanto quanto diferente um do outro. Só que não chegava a ser só isso, chegava a outros vias de fato, e no fim, eu achava que seria capaz de esquecer tudo facilmente, mas não me esquecia. Já ouvi dizer que feridas mesmo com as cascas já formadas, costumam latejar em dias frios, chuvosos e tristes, agora eu vejo que é verdade. Nunca me considerei uma má pessoa, mas a minha irmã sempre me aconselhou a ser uma garota ruim. Uma garota que responde para os outros, sabe ignorar na hora certa e na proporção exata, tudo o que ela é, e me encanta acima de tudo.

Não comentei com você sobre a história dos meus pais e nem como se apaixonaram, nem como Beatrice veio a ser um empecilho nisso tudo. Meus pais começaram a se namorar muito cedo, mamãe tinha 16 anos enquanto meu pai era dois anos mais velho que ela, completando assim 18 anos e na época era um problema e tanto um casal tão jovem se amar daquela maneira. Sempre vejo as fotos dos dois juntos, abraçados, ou apenas trocando olhares de amor, que eram sentidos apenas por fotografias e aquilo era perfeito, eu quero ter um amor assim um dia. Beatrice nasceu do acaso e inesperado, já que a minha mãe não queria ter filhos, papai muito menos, desejavam trabalhar, ter uma vida boa e quando enfim se resolvessem, pensar em ter uma família, coisa que meus avós não aceitavam e achavam errado. Coisa que também hoje em dia é o que mais acontece. Garotas da minha idade não pensam em ter filhos. Pensam em aproveitar suas vidas, seus dias, seus últimos momentos sem ter nada nem ninguém atrapalhando esse pensamento ou atitude. Mas eles chegaram numa conclusão no fim das contas, teriam a garota, viveriam juntos e até poderiam ir embora da cidade de Louisiana, mas ali não viveriam.

Eles chegaram a se separar por um tempo, mas o amor e a saudade eram cúmplice que os uniram, e hoje, somos a família Silver. Tá, mais o que esse pensamento tem a ver com o que estava acontecendo ali dentro daquele banheiro? Não era o cheiro forte de produto de limpeza, nem mesmo as risadas em torno de mim, até o simples medo de levar um soco no rosto de qualquer garota que me cercava. Era a necessidade de lembrar de todos os momentos bons e ruins que meus pais passaram e que com certeza eles já passaram por isso, sofreram por conta disso, e estavam vivos, porque eu não?

- Veja só, a cabritinha. Ou melhor, a novata. Quem diria, a minha mãe sempre me disse que as mais quietinhas, são as piores e agora entendo. Elas são ótimas em escutar, inclusive atrás da porta. - Jennifer começou, andando de um lado pro outro como se estivesse apertada para ir ao banheiro. Não me importaria se ela o usasse, dando pra mim fugir.

- Ihh, Jen! Ela não vai falar nada não. - Protestou uma das garotas, com suas unhas enormes e pontudas na minha direção. Suspirei, antes de tentar dar um passo em falso e ser empurrada na parede fria. Meus pulmões doíam, minha cabeça latejava.

- Eu vou fazer ela falar.

- Não, não vai fazer coisa nenhuma. - Foi ai que eu reagi, no impulso, sabe? Essa seria a minha desculpa caso fosse chamada na diretoria mais tarde por algo que não fiz e nem provoquei. Empurrei todas aquelas meninas, inclusive Jennifer, que gritou e agarrou a ponta do meu cabelo e tentou me puxar de volta, mas foi em vão já que eu sai do banheiro e me enfiei no meio de um monte de aluno. Ela poderia vir atrás, poderia tentar me acertar a qualquer outro momento mas não agora. Não no meu primeiro dia.

* * *

Nunca fui de ter crises de nervosismo, já tive mais foi em casa e a minha mãe sempre soube me consolar e fazer o sangue parar. Pior ainda quando isso resolve acontecer fora da sua casa, quando a sua mãe resolve sumir nas horas mais impróprias e a sua irmã, que deveria estar com você e te dar uma carona, some. Eu estava andando de um lado para o outro no corredor da escola e eu tinha um plano: Não ir pro banheiro para ser encurralada novamente por Jennifer e suas colegas. Mas também não poderia ficar andando com um punhado de folha de caderno no nariz e correr o risco de ser pega e acharem que eu estava fazendo qualquer outra coisa que não seja, estancar meu sangramento nasal.

- Deveria estar em casa, Mel. - Eu não reconheci bem aquela voz, mas ao olhar melhor lembrei quem era, era o cara do refeitório, o garoto comunicativo e bonito que Patrícia havia me apresentado.

- Michael, não é? - Ele se aproximou e mesmo com a vista embaçada eu pude ver como ele estava sorridente e concordou, mas ficou espantado quando me viu retirar o papel de sobre o lábio pra tentar me comunicar. Possivelmente o sangue estava escorrendo de novo.

- Você caiu? Meu Deus, vem, vou te levar pro..

- Não! Não me leva pro banheiro eu quero ir pra casa mas é possível que a minha querida irmã, me deixou aqui, de propósito. E eu estou ficando tonta, e se você puder me arranjar um pouco de papel, eu agradeceria. - Michael riu pra mim, meu deus, ele era realmente bonito. Lábios bem marcados, pele queimada do sol - qual sol? - e cabelos raspados de uma forma tão...exótica. Sua sobrancelha era bem mais feita do que a minha, e mesmo pela luz artificial dos corredores vi como seus olhos tinham um tom castanho bem claro, que brilhava na minha direção. Por um momento jurei que ele me pegaria no colo e me guiaria pra qualquer outro canto que não fosse a enfermaria da escola, mas como sempre, pura expectativa de uma garota adolescente e problemática. Vi que ele conversou com um tempo com a famosa "tia" conhecida universalmente por todos os alunos e crianças e ela me obrigou a sentar. Limpou meu nariz de todas as formas e me obrigou a ficar parada e com a cabeça erguida por um bom tempo e com os olhos, de preferência, abertos, já que não queria me ver dormir. Por ser enfermeira, deixar um paciente ali sozinho deveria ser crime, ainda mais sendo Michael, que se sentou do meu lado. E eu só percebi isso quando ele puxou a cadeira e seu perfume ficou mais forte, mais próximo, delicioso.

Era algo doce, intenso, me dava vontade de enfiar o rosto em sua pele e absorver cada partícula dele.

- Você deveria estar em casa. - Sussurrei. Mesmo sem olhar para ele eu sabia que ele havia sorrido, deixando suas presas tão bem definidas visíveis, além das covinhas profundas em cada lado da bochecha.

- Eu sei. Tive que fazer inscrição em algumas coisas por aqui, que surgiram pra mim. Patrícia também me abandonou no estacionamento.

- Posso perguntar o motivo? - Estava sendo intrometida, eu sabia, mas ele pareceu não estar incomodado.

- Por eu ter abandonado vocês hoje no refeitório pela sua pergunta. Ela disse que era pra mim me desculpar, só que eu sou péssimo pra pedir desculpas.

- Que horas pensava em fazer isso? - Abaixei um pouco a cabeça e o fitei. Michael passava as mãos no jeans escuro, ele soava. Não estava calor, era nervosismo.

- Amanhã no intervalo. De qualquer forma, foi mal por hoje. Não me leve tão a sério!

- Quer dizer que a sua desculpa eu não devo levar tão a sério? - Arqueei uma das sobrancelhas e ele também, cruzando os braços e deixando-os tão definidos, criava curvas e curvas, que boba.

- Meu pedido de desculpa sim. Digo as minhas atitudes. E você deveria estar com a cabeça pra cima. - Eu sorri. Era a segunda vez que eu estava sorrindo para alguém que não fosse Patrícia, a professora ou a minha irmã hoje mais cedo. Era sincero e intenso, igual ao que eu estava recebendo.

- Eu já estou me sentindo melhor e acho bom eu ir pra casa. Caso contrário a minha mãe vai me matar, caso esteja em casa já. - Revirei os olhos e percebi o que havia dito de maneira tão estúpida. Michael quis me questionar apenas com os olhos e eu apenas me levantei da cadeira e procurei a minha mochila, mas novamente ele segurou em um dos meus braços. Achava que ele seria capaz de me colocar de volta naquela maldita cadeira mas ele não o fez, apenas foi saindo andando comigo rumo as escadas que davam para a porta de saída. Que numa hora destas poderia estar trancada, exatamente como naqueles filmes americanos, onde um casal de amigos ficam trancados até o próximo dia e sem querer, são obrigados a se ajudarem por horas, e no fim, se beijam, ficam juntos, são felizes. Mas Michael parecia desconfortável.

Quando saímos do colégio, joguei os papéis sujos na primeira lixeira. O céu em torno da gente tinha um tom alaranjado forte, junto com o cinza deixava mais que claro que já estava ficando tarde. E que pela primeira vez eu vi uma colega de sala errar o horário, que anunciava ser as 14:00, mas havíamos passado desse horário. No meu relógio constava 18:30, e constava também que ouviria muito ao colocar os pés em casa, mesmo sem ter desculpa alguma.

- É melhor eu te levar pra casa.- Sussurrou Michael. Que estava um pouco mais distante de mim e segurava entre os lábios um cigarro e tentava inutilmente acendê-lo, e quando conseguiu, tragou e soltou a fumaça pelo canto da boca. Aquela poderia ser a cena mais sexy que eu poderia ter visto por hoje, por hora, e de fato era. Ele passou as mãos pelo que ele considerava ser seus cabelos e então me chamou e voltou a caminhar em direção ao que parecia ser seu carro. Mas não era um carro, e sim uma maldita moto.

- Só pode estar brincando comigo, não é? - Protestei, batendo um dos pés no chão e Michael apenas riu. Ajeitando-se sobre a moto e deixando a mochila de lado, sabia o que ele queira. Que a pegasse ou a segurasse, mas eu não queria. Como também não tinha outra escolha. Era uma Honda antiga e preta, com certeza remontada mais em perfeito estado, o que também era deixado bem visível na minha cara era que, Michael era ainda mais velho do que eu. Tinha sua moto, sua carta, fumava, era descolado, quais surpresas ainda teria?

- Vem. - Perdi as contas de quantas vezes jurei a mim mesma que não seria tão idiota, inclusive de ficar dizendo "Não" pra tudo. Foi ai que tomei a iniciativa de pegar sua mochila e ajeitá-la em um dos meus ombros, mesmo que desconfortável já que ainda carregava a minha mochila, mas me sentei logo atrás dele. Era confortável a princípio, mas meu estômago se revirava sem termos saído do lugar. - E acho melhor se segurar.

- Michael pelo amor de que tem...não faça merda. - Foi as minhas últimas palavras antes de ouvir o ronco da moto, meu corpo todo tremia e os meus braços automaticamente envolveram a cintura de Michael. - A gente vai sem capacete?

Ok, era uma pergunta idiota, ainda mais quando já estamos saindo do lugar. No inicio ele seguiu devagar, meus cabelos balançavam um pouco como de inicio da noite, penetrava sobre as minhas roupas e contra o meu rosto. Queria poder ter prestado melhor a atenção na paisagem em torno da gente, passando rápido, e torcia para que o tempo sempre fosse dessa maneira, passasse correndo, como os borrões que eu tive antes dele acelerar. Queria sorrir, queria apertá-lo ainda mais e até gritá-lo. Era uma garota que nunca havia andado de moto e nem corrido riscos, era inocente ao olhos dos outros, mas não nos meus próprios olhos, e nem no meu ponto de vista. Me sentia muito bem.

Parecia que tudo em torno de mim era perfeito, com direito a trilha sonora mental.

* * *

No trajeto todo, Michael se manteve quieto. As vezes quando afastava a cabeça e tentava olhar qualquer uma de suas expressões era como se ele não estivesse nenhum pouco interessado, ou como lia sempre em livros e achava aquela descrição perfeita para o que eu vi de relance: Não demonstrava emoção.

Seus olhos tinham um livro, mais jurava ser apenas pequenos choques que as luzes dos postes em torno da gente enviavam e davam aquela impressão. Seu cigarro havia acabado, mas vi diversas vezes ele soltar uma das mãos e liberar cada nuvem de fumaça sem pressa alguma. No final estávamos em frente de casa, ou melhor, no enorme caminho que deveria seguir até estar no meu "quintal". Desci da moto devagar e lhe entreguei a mochila.

- Devo agradecer pela carona inusitada? - Não tinha intimidade alguma com Michael, nem tive tempo o suficiente para conhecê-lo mais já havia absorvido uma boa dose de confiança que eu não teria problema algum de entregar de mãos abertas para ele.

- Você já agradeceu subindo na Harley. Amanhã a gente se vê, cabritinha. - Foi então que eu percebi, e me lembrei.

- Espera ai, como você sabe do "cabritinha"? - Ele riu, acelerando a moto por um instante até gritar.

- Jennifer me contou o acontecido, ou melhor, espalhou na escola que você a empurrou.

- E você acreditou? - O que com certeza era verdade. - A garota me encurralou no banheiro. No. Banheiro. Onde já se viu isso? - Michael gargalhou, passando as mãos pelo rosto, inclusive num punhado de barba que crescia no queixo, possível cavanhaque.

- Uma coisa que eu aprendi ao conhecer a Jennifer é não acreditar em nada do que ela diz. Quanto ao cabritinha, até que combina com você. Até amanhã! - E ele me deixou ali, com a maior cara de tacho e prestes a correr atrás de uma moto que numa hora destas, deveria estar a uns 80 quilômetros por hora. Deixei quieto, amanhã eu o veria mesmo, caso meus pais não me matassem.

Sabe quando você esta andando em plena mata fechada e não se sente sozinha? Era como se existissem olhos sobre você em todo o lugar. Presenças imaginárias mas desconfortáveis o bastante para te fazer querer correr. Eu já havia andado naquele mesmo lugar por várias vezes mas nunca numa hora daquelas e era de arrepiar cada centímetro do meu corpo. Eu podia ver as luzes de casa a uma distancia considerável, eu poderia correr, mas sentia a minha perna tremer cada vez mais depois de apenas alguns minutos em cima de uma moto, mas doía, só que era uma dor boa que eu sabia que valeu a pena. Quando finalmente vi os degraus de casa que dava para a enorme varanda que tínhamos, eu suspirei aliviada, subindo-a rapidamente e me enfiando em casa de modo que todo aquele calor direto da lareira me atingisse e me fizesse querer deitar no sofá e ouvir cada pedaço de madeira crepitar. Só que não foi bem isso que eu vi.

Beatrice estava no sofá da sala com meu irmão e me olhou como se eu fosse a culpada, ou a garota que fugiu da aula, ou matou a aula, que seja.

- Onde você estava? Eu fiquei te esperando por horas naquela porcaria de estacionamento, Melanie!!

- Se estivesse tão preocupada teria percebido que foi EU quem fiquei te esperando e você já havia ido embora. - Estava prestes a subir as escadas para o meu quarto quando ela veio atrás. Seu rosto estava vermelho feito um tomate, seus olhos brilhavam na minha direção e eu jurava que ela pularia no meu pescoço e me enforcaria por um bom tempo, mesmo após a minha morte. Mas ela não o fez.

- Ligaram no meu celular da escola do Pedro, pra ir buscá-lo. Por ser primeiro dia na escola dele, o dispensaram mais cedo. Não pude esperar, só que eu voltei lá e você não estava.

- Tive um probleminha. Mas um colega da escola me deu uma carona até aqui. Cadê a mamãe? - Disse, entrando no quarto de Sara, tudo estava exatamente como ela costumava deixar, organizado. A cama ajeitada, os travesseiros postos, até seu perfume estava presente no cômodo, mesmo ela não estando.

- Quem era o garoto? - Não respondi. Sabia como Beatrice era, contaria imediatamente para o papai ou com a mamãe e eles acabariam me fazendo afastar de Michael e até Patrícia, achando serem má influência para mim.

- Vou tomar um banho. Não é melhor ir fazendo a janta? - Sussurrei, saindo do quarto e indo direto para o meu. Por sorte eu não dividia mais quarto com a minha irmã, mamãe quando veio para cá disse que cada um teria seu quarto, até mesmo Pedro que embora fosse pequeno deveria já ter sua privacidade. Quando morávamos em Louisiana, dividia quarto com Beatrice e brigávamos boa parte do tempo, por questão de intimidade e privacidade. Ela era a mais velha e queria ter seus momentos, convidar suas colegas pra casa e levá-las para o quarto, que eu sempre estava. Quando não estava no quarto, estava nos fundos de casa, lendo algum livro dos guardados dos meus pais, e me distraia com isso.

Além é claro das minhas duas coisas preferidas: Fotografia e pintura. Tinha um moleskine que havia ganhado de presente no meu aniversário de 12 anos do meu pai, e da minha mãe um punhado de tinta aquarela e pinceis dos quais eu guardava até hoje e cuidava deles como se fossem preciosos. Era difícil ganharmos algo, quando acontecia, era bom preservar. Quanto as fotografias, ganhei de Beatrice aos 15 anos uma Polaroid que ficava junto com meus livros na estante. Tinha um monte de fotografias tiradas por mim espalhadas pela casa, além das que eu guardava comigo e considerava um arquivo pessoal. Beatrice pediu que a guardasse, e que se futuramente eu decidisse levar mais a sério a minha pintura, poderia fotografar meus quadros, desenhos e até levar a sério minhas fotografias, tornando um trabalho e tanto. Mas sabia que nada disso aconteceria, porque não tinha tantas expectativas. Sabia que tudo seria diferente do que eu fosse imaginar, e aquilo não me magoava nenhum pouco, pelo contrário, ficava animada, e torcia para que o que viesse, chegasse logo.

Beatrice saiu do meu quarto finalmente, me deixando sozinha com meus pensamentos e o cheiro das flores que embora secas no canto próximo da minha cama, ainda tinham seu perfume delicado e encantador. Queria me jogar ali e adormecer até o próximo dia do qual eu já estava torcendo que fosse igual a este primeiro dia, mas com apenas pouco tempo de vida, havia aprendido que as coisas não eram assim, inclusive quando se colocava expectativas, em algo que eu sabia que seria totalmente diferente, e principalmente quando se tratava de mim, tudo dava errado.

* * *
Não vi mamãe chegar, apenas meu pai sendo que eu havia sido acordada sozinha, já que passei boa parte da noite me revirando na cama tentando dormir e nada de conseguir. Ainda estava com aquela sensação estranha na boca do estômago, a mesma que eu senti quando subi na moto com Michael e ele deu partida. Poderia ter pedido pra ele seguir um caminho indefinido, me surpreendesse, mas tudo era da minha cabeça, coisas assim não acontecem no meu mundo.

Estava ajeitando a gravata no pescoço e descendo chutando a mochila pela escada quando vi Beatrice parada tomando seu rotineiro café na sua enorme caneca. Pedro já havia sido levado pelo papai já que ele não estava com a gente. Em momento algum a minha irmã tocou no assunto sobre mamãe, o que era estranho, a casa estava mais quieta e sinistra do que o normal e eu tinha um leve pressentimento que isso não era bom.

Nos enfiamos no carro em silêncio e como sempre, ele era preenchido apenas pelo ronco do sua Caminhonete, que seguia o mesmo trecho que eu peguei ontem a noite. Olhei de soslaio para Beatrice, que estava mais pálida que o normal e pareceu não estar nenhum pouco afim de responder qualquer pergunta que fosse feita por mim. Eu poderia tentar, ela me falaria um monte e eu não ligaria, então tentei.
- Papai não disse quando a mamãe vai voltar? - Ela engoliu em seco e me olhou, percebi suas olheiras, e como era a primeira vez em que ela estava indo pro colégio sem se maquiar ou cuidar-se como sempre fez. Realmente algo estava acontecendo.
- Disse que volta logo, não se preocupa. Só disse que vamos ter que dividir nossas obrigações por enquanto, ela só tinha algumas coisas pra resolver, Mel. - Beatrice nunca me chamou pelo apelido, franzi de leve a testa e dei de ombros.
- Ela deveria ter avisado que ia sumir assim. - E não escutei resposta alguma apenas um suspiro e novamente o ronco seco do motor. Abracei a minha mochila e esperei que chegássemos logo na escola, o que não demorou também.

Estar no estacionamento do colégio era bem melhor do que continuar dividindo um espaço pequeno e o mesmo oxigênio que Beatrice por alguns minutos. Seu ar de raiva, ódio e agora, tristeza, uma tristeza que eu mesma não entendia, e ela não fazia jeito que me faria entender.