Parte Sete - Sem ar.

Pelo enorme relógio que era parte da coleção do meu pai, marcava exatos 7 horas da manhã. E eu não havia conseguido pregar os olhos em momento algum. O que me causava uma dor profunda na cabeça sem contar como meu corpo doía cada vez que eu me movia na intenção de me acomodar nos braços de Michael. Ele como prometido, ficou comigo e não soltou a minha mão, como também pareceu não se importar com a situação e nem como a coisa ficaria feia. Cheguei a ficar com pena do seu corpo, com certeza moído pelo meu peso, mas por não ouvir quaisquer resmungo vindo dele, acreditava que não estava nenhum pouco incomodo.

- Aonde você vai? - Ouvi sua voz assim que ia me levantando sorrateira do sofá, sua mão havia sido rápida o bastante para agarrar na barra da minha blusa e me puxar para perto dele novamente. Eu poderia sorrir com isso, mas no meu estado, nem forças pra isso eu teria. Apenas dei de ombros e me mantive de pé. - Eu sei que você quer saber o que esta acontecendo, mas é melhor descansar. Veja, seu pai.

Meus olhos buscaram a fresta da janela e imediatamente eu fui abrindo a porta de casa. Papai e Beatrice estavam juntos e com roupas diferentes das que eu tinha visto eles da última vez. Parecia ter feito uma década desde a última vez em que estive com ele, não minutos. Primeiro foi a minha irmã que me olhou assustada, sabia que o cheiro de sangue a deixaria doida e até mesmo não iria me abraçar. Mas pelo contrário, ela apenas me puxou e me abraçou. Mas a reação do meu pai foi totalmente inesperada.

- O que esse moleque esta fazendo aqui? Ele não esta vendo como a nossa vida esta destruída e ainda pensa em romance? - Bea me segurou pelos ombros enquanto a única coisa que eu desejava era entrar no meio do meu pai e Michael. Afastá-los um do outro para que não brigassem.

- Paaai não! Ele me ajudou. Aconteceu algo enquanto estiveram fora e ele me salvou. - Seria a frase perfeita se meu pai não fosse mais rápido e tentasse acertar o rosto do garoto parado em sua frente. Por incrível que pareça, Michael não demonstrou muita reação. No fundo eu soube que aquele soco, era uma forma do meu pai descontar toda a raiva, fúria e frustração destes últimos dias, mas descontou na pessoa errada. Logo que Michael se virou e me olhou vi como sua boca sangrava e como ele chegou a sorrir bem de leve, não soube se era por conta do gosto, ou por ele ter lido meus pensamentos quanto ao "descontar nas pessoas erradas". Seus olhos procuraram o meu e ele logo suspirou, passando por entre nós três e indo direto para a sua moto. Queria poder abraçá-lo e pedir desculpas pela atitude grotesca do meu pai, mais antes mesmo de eu falar algo, já estava sendo arrastada pra dentro de casa, e a porta fora trancada.

Meu quarto estava um verdadeiro inferno. Não só com a presença do meu pai e da minha irmã tentando entender e me considerando louca por dizer que era um monstro e não pessoas normais. Seria bom se cada momento vivido pela gente fosse fotografado automaticamente, assim poderia provar cada uma das coisas que tenho visto e vivi numa única coisa. No fim, tomei um banho longo, esfreguei até a minha pele não estar branca mais, e sim vermelha pela força em que tentei me limpar. Meus cabelos já estavam limpos, e me olhando do espelho até que me parecia a mesma menina de horas atrás, se não fosse os pensamentos que rondavam a minha cabeça.

Estava tudo girando. Estava me lembrando de Michael e ao mesmo tempo, me lembrando daquele monstro horrível, e pensando também no que no final das contas havia dentro daquela caixa. Mal tive tempo de mexer nela para saber o que de fato trazia dentro de algo que antes para mim era só um enfeite. Coloquei meu casaco mais grosso de frio e minhas botas. Aproveitei que Beatrice estava dormindo e papai estava nos fundos de casa onde era seu esconderijo e fui caminhar pela floresta em torno da nossa casa. Nada de diferente ou especial. Esquilos correndo, folhas secas das árvores que foram dominadas pelo neve que caiu boa parte da noite. Meus dedos estavam roxos de cada vez em que eu parava e me abaixada para segurar um punhado de gelo em minhas mãos. Até que me lembrei que tinha o número do celular de Michael e poderia tentar ligar e me desculpar pelo que aconteceu. Não sabia se ele atenderia, mas como sempre, eu era tão negativa que chegava a me assustar com isso e era um defeito péssimo para uma garota como eu, mas o que poderia fazer.

Procurei seu número na agenda e disquei. Não demorou muito tempo para que ele atendesse.

- Oi. - Sua voz estava baixa. Diferente das outras vezes não senti confiança alguma e nem mesmo determinação. Ele me odiava.

- Oi. Só liguei para me desculpar com você pelo que houve. Não imaginava que ele fosse capaz de fazer isso, logo com você. - Não era bem as palavras que ele parecia querer ouvir, mas ainda assim eu ouvi sua fungada do outro lado da linha e ele em seguida rir baixinho.

- Não precisa se desculpar. Meio que entendo o que vocês estão passando, e seu pai fez errado em ter me batido, mas ao menos deve estar mais calmo.

- Ainda assim. Ele foi idiota em ter feito isso com você! Não estamos conversando.

- Ele é seu pai. Só tentou te proteger. Você não comentou sobre o que aconteceu ou viu né?

- Não deveria? - Protestei. Olhando em torno de mim e começando a caminhar novamente. A floresta em torno de mim não era grande, mas certos pontos para mim era totalmente desconhecidos, e toda vez em que andava por ali, era com meu irmão ou com a própria Beatrice, que me mostrava o caminho de volta. Ainda estava cedo e mesmo com o tempo nublado e com a pouca claridade, eu saberia voltar tranquilamente.

- Tínhamos conversado sobre isso, pequena. Por enquanto o que houve, fica entre nós dois. É melhor. - Ouvi alguns passos atrás de mim. Todo meu corpo se enrijeceu e meus dedos soltaram o celular mais rápido do que as minhas pernas para correrem. Tentei encontrá-lo em meio as folhas e quando finalmente vi o aparelho entre algumas pedras, comecei a andar mais rápido. Os passos pareciam ficar mais próximos e a cada estalo de galho ou arfadas eu corria mais rápido. - Você esta ai?

Me lembrei que ainda estava na linha com Michael, que me chamava do outro lado descontrolado.

- Tem alguém me seguindo. - Tentei dizer. Por sorte ele conseguiu entender.

- Aonde você esta? - Sua voz se tornou rígida, não tanto quanto as minhas pernas se encontraram enquanto corria e procurava algum lugar pra me esconder. Logo que me encostei em dois troncos que se juntaram conforme foram crescendo, me abaixei e tentei não respirar, mas precisava dizer algo a Michael.

- To na floresta em torno da minha casa. Preciso desligar. - E foi mais uma das coisas que pareceu impossível para mim. Apertei bem meus olhos antes de ir me abaixando e enroscar meus próprios braços em torno das pernas que tremiam. Estava ficando frio e até minha própria respiração parecia se tornar um sinal de alerta de "Olha eu estou aqui". Prendi a respiração por 5 segundos e fui aumentando eles conforme ouvia os passos mais próximos de mim. Apertei bem meus olhos e meus dedos nas minhas pernas até doerem.

- Ela não esta aqui. - Alguém gritou meio abafado. Em segundos eu percebi que era o alvo disso tudo e o pior, nem sabia o real motivo de estar sendo "caçada". Esta certo que a minha família era um problema e tinha lá suas discórdias, mais logo eu? Logo que os passos foram ficando mais rápidos, assim como as vozes em torno de mim foram se afastando, fui tomando forças para me levantar e olhar em volta. Não havia nenhum sinal de quem quer que fosse, estivesse ali ainda me esperando. Comecei a andar da forma mais silenciosa possível, até alguém segurar em dos meus braços e me arrastar. Não consegui ver muito bem o rosto, só a cor da pele branca feito uma folha de papel nova, e os cabelos vermelhos feito fogo, não iguais aos meus, pareciam tingidos, e chegava a ser uma cor ridícula. Mas não era algo em que deveria prestar a atenção agora.

- Me larga!!! - Gritei. Me balançando feito uma idiota até ser "largada" e jogada no chão com toda a força. Mesmo que a minha cabeça tivesse batido contra um punhado de folhas secas, tudo rodou em volta de mim e o ar faltou. Ainda assim arrumei forças de me virar e ir me arrastando, movendo as pernas das quais agora eram seguras por duas mãos enormes.

- ELA ESTA AQUI!!! - A voz era grossa, só que para mim era disforme, estranha, levemente rouca e desconhecida. O homem usava roupas escuras, óculos escuros e parecia preocupado em saber onde me arrastaria e aonde ficaria.

- Você teve sorte cara. Ela é esperta. - Mais dois homens chegaram e me cercaram enquanto eu me mantinha abaixada ao chão. Não queria erguer a cabeça e encarar a situação, mas ainda o fiz. Estava no modo automático, sem arrependimentos, o que era super errado.

- Ela é a cara dela. - Um dos homens disse. Os dois novos homens ali presentes usavam o mesmo tipo de roupa, casaco preto com touca, calça jeans escura e seus tênis estavam sujos de barro seco. Suas peles eram claras a ponto de ver as veias em suas mãos e em um dos braços, cada traço esverdeado.

- Cara, acaba logo com isso. O chefe já deve estar puto com a gente!! - O ruivo disso. Cruzando os braços e mexendo com a cabeça. Eles pareciam ser iniciantes em "sequestros". Que idiota deixaria o refém solto ali no chão? Rápido me impulsionei a ficar de pé e empurrei os dois homens para que então corresse. Nos filmes geralmente quem faz isso acaba morrendo. Mas eles pareciam nem ter armas ou forças o suficiente para me pegarem ou me matarem, por isso tentei. Corria o mais rápido possível. Meus cabelos estavam virando um emaranhado no meu rosto e me sufocava ao entrar na minha boca, isso era o menor dos meus problemas até um deles surgir na minha frente.

- Achou que ia fugir assim? - Desta vez era um moreno. Que sorria de forma debochada e movia os dedos que estalavam e eu podia ouvir isso e me causava aflição. Devagar ele ia me cercando e me deixando sem saída. Quando resolveu vir para cima fiz algo que nunca imaginei.  Não só desviei, como aproveitei do momento em que ele caiu no chão, saltei em suas costas e pressionei a sua cabeça contra o chão de terra. Ele estava desesperado, queria gritar e ainda assim não o permiti. Eu não era tão forte assim, era uma garota de 1,58 de altura e 65 quilos e o cara daria dois de mim sem problema algum.

Num minuto de distração ele me rodou e trocou de lugar, ficando sobre mim e colocando suas duas mãos em minha garganta. Ele era de fato forte e sabia o que fazia. Tinha a intenção de me matar ao invés de me manter viva, que parecia ser a intenção dos seus colegas, mas não a dele.

- Você já me causou, muito problema garota. Você, sua mãe, sua família de sangue ruim. - Eu me sentia engasgando. Queria tossir, respirar e ao mesmo tempo atingir ao homem com as minhas mãos. Meus olhos se apertavam e eu me movia, precisava de ar, precisava respirar. Não poderia morrer assim sem ninguém saber ou até mesmo me encontrar. O que meu pai pensaria? Que foi tudo em vão e eu não, me permitiria a isso, jamais. Aos poucos tudo foi ficando escuro, meu corpo já parecia ir se desfalecendo aos poucos e quando percebi, me desliguei.

* * *
O que realmente aconteceu? Era a pergunta que eu estava fazendo desde o momento em que abri os olhos novamente e me vi cercada pelos mesmos homens que tentaram me pegar. Mas ao invés de encontrá-los vivos, estavam mortos. Ao menos foi a certeza que tive ao perceber todo aquele sangue em volta de mim. Boa parte dos ferimentos eram no pescoço, além é claro de buracos feitos em suas camisas bem ao meio do peito. Era cena de filme aquilo, era apavorante para alguém que nunca se imaginou presenciando algo como aquilo. O mesmo cheiro doce, de ferro estava impregnado em mim, na minha pele, roupa, cabelo. Meu rosto estava ensanguentado, assim como as minhas mãos estavam sujas de um "líquido" preto e viscoso que se enroscava em torno dos meus dedos e mesmo que esfregasse no meu jeans já velho, não saia de forma alguma.

Estava tentando relembrar o caminho de volta para casa, mas no fundo eu não queria, não poderia, não com as coisas como estavam. Fui caminhando devagar em busca do lago que circundava a nossa casa com a intenção de me limpar e pensar um pouco no que faria e me lembrar do que de fato houve ali. Mas nem obrigando a minha mente, funcionava. Tinha bloqueado qualquer lembrança ruim, e isso não era bom.

Não demorou para que boa parte da mata fosse ficando mais aberta, e o chão antes de terra fosse substituído por pedregulhos. Que mesmo com meu tênis, eram pontudas e incomodavam a cada passo mais forte ou rápido que eu desse. Não havia um ruído que fosse em volta de mim. Eu estava sozinha. O lago era pequeno mais suas águas esverdeadas e transparentes eram limpas o bastante para que eu pudesse matar a minha sede e ainda, limpar qualquer resquício do que deveria ser prova de algo, que nem mesmo eu, me lembrava que fiz. Primeiro limpei as minhas mãos, meu rosto, tirei meu casaco de frio que antes estava limpo e agora carregava um fedor que só ficava mais forte. Aquilo não era sangue humano, não era normal, era ruim, podre. Quando terminei. Suspirei fundo. O que antes era um suspiro tranquilo, normal. Se tornou uma névoa. Me sentia pequena e com frio. Nem mesmo com o meu celular eu estava e nem fazia ideia da onde ele havia ido parar no meio do "rolo". Mas esse era o menor dos problemas.
- Michael. - Poderia ser coisa da minha cabeça mas acredite, não foi. Ao erguer a cabeça e focar ao outro lado do lago, vi um homem abaixado a beira da água, parecia prestar bastante a atenção em seu próprio reflexo na água, e assim como eu estava sujo de algo escuro, levemente avermelhado, parecia vinho. E assim que ouviu a minha voz ele ergueu a cabeça, mas não ficou, apenas se ergueu e foi embora. Seus passos eram despreocupados e precipitados.

Ele sabia que eu não teria tempo de correr em torno do lago e alcançá-lo. Por isso a falta de pressa, e o pior. Se fosse Michael, porque ele não esperou?

* * *
Consegui voltar para casa por volta de três horas depois. Só percebi que o caminho se tornou mais fácil ao ver a caminhonete da minha irmã parada em frente de casa e notei a falta do carro do papai. O que era bom. Ele não me veria assim e não teria que me explicar de novo. Eles ainda me olhavam como se eu fosse louca ou achando que inventei tudo o que havia acontecido. Seria engraçado e trágico ao mesmo tempo ver eles passarem pela mesma coisa que eu. Lutarem pela própria vida e por algo, que você nem faz ideia, para que serve. Subi as escadas correndo direto para o meu quarto e parei subitamente ao ver Michael sentado na beirada da minha cama. Olhei em volta do cômodo agora abafado e na falta de alguns móveis. A janela.

Ele havia entrado pela janela. Não havia outra maneira dele entrar e ficar ali a minha espera se não fosse por lá.
- O que você quer aqui? - Foram palavras brutas, diretas, secas. E que pelo visto o atingiram pela maneira com que me olhou, surpreso.
- Eu fiquei preocupado com você. Te liguei diversas vezes e em nenhuma delas você me atendeu. O que houve, Mel? - Sem jeito Michael se levantou e veio na minha direção. Segurou as minhas mãos ainda tingidas pelo sangue dos indivíduos. Pela primeira vez notei uma versão diferente do garoto que em poucos meses me conquistou. Michael tinha também seu lado sensível e preocupado. Não somente o garoto indiferente, com um sorriso torto e maneiro. Que tinha uma moto da qual dava vontade de convidá-lo para fugir comigo e pegar estrada para qualquer lugar, mas que fosse com ele.
- Não podia falar com você naquele momento. Estava sendo perseguida. E o pior. Nem sei o motivo de me querem tanto, morta. - As palavras foram saindo aos picados, ainda assim ele entendeu e sem mais, me abraçou. Seus dedos afundaram nos meus cabelos e afagavam o meu couro cabeludo. Se fosse em qualquer outro momento eu adoraria sentir aquilo, amaria dormir com aqueles afagos e acordar com a sensação de formigamento, como se fosse fantasma. O fantasma do Michael.
- O que você estava fazendo na floresta sozinha? Não é confiável ficar sozinha andando no meio desse lugar.
- Desde que me mudei pra cá, sempre andei sozinha, com a minha irmã ou irmão. Nunca aconteceu algo como hoje. Michael, eles estão mortos. E acho que foi eu. - Meus olhos se encheram de lágrimas e eu comecei a chorar. Era algo raro. Me sentia envergonhada por isso, mas era como se tivesse sobrecarregado tudo, e precisasse liberar de alguma forma, e essa forma, era chorando.
- Shhi...você não fez nada. Você não é culpada de nada. Fica tranquila, ok? Eu vou ficar com você. Olha pra mim, Melanie. - Mesmo sem eu querer. Michael segurou meu rosto com seus dedos e me fez olhá-lo nos olhos. Sua imagem para mim era um borrão, mas ainda pude notar o brilho dos seus olhos. - Eu vou ficar sempre do seu lado. Vou te proteger de qualquer que seja a pessoa que esteja querendo acabar com você. Vou fazer de tudo pra você ficar bem, pra você ficar feliz e segura. Não há outro motivo para mim não estar aqui e fazer qualquer coisa por você.

Não tive resposta para suas palavras, mas acredito que pela forma com que o abracei. Ele entendeu. Eu o amava também.

Nenhum comentário:

Postar um comentário