Parte Quatro - Fora do Ar.

Pela enorme da janela do meu quarto eu vi as luzes se aproximando. Elas eram intensas e seriam capazes de queimar a minha retina, mas não me importaria de não ver nunca mais o que fui capaz de ver naquela noite. Mamãe sempre soube ensinar a todos nós os valores, inclusive o quanto deveríamos ser fortes para o que viesse acontecer. Como ela estaria adivinhando? Pedro estava nos meus braços dormindo e papai lá de baixo gritava feito uma criança que acabará de perder seu brinquedo precioso. Estava tentando me colocar em seu lugar mas era algo difícil e que eu mesma não conseguiria nem se de fato incorporasse o homem frágil que só quer ter notícia da mulher, que sumiu sem deixar nada, nenhuma pista, nada. Deixou apenas um rastro terrível de desolação.

Havia aprendido uma técnica quando mais nova que nestes momentos é bom a gente respirar fundo e fechar bem os olhos. E focar em alguma outra coisa. Era o que estava fazendo, mas porque não funcionava? Ouvi os policiais lá debaixo anunciarem que aquele pedaço dentro da caixa, aquele antebraço, era da minha mãe. Mas nada era confirmado. Só que o desespero do meu pai ficou mais intenso ao perceber que ainda usava a mesma aliança da qual ele deu para Sara. A mesma pedra brilhante agora estava fosca, preenchida por um sangue que deveria ser da minha mãe. Quem é que estivesse fazendo isso tinha a intenção de atingir a todos, e conseguiu.

Sabia o quanto meu pai era teimoso e correria atrás não só de descobrir quem estava fazendo aquilo, mas me espantei ao conseguir fazer Pedro dormir um pouco que fosse e desci um pouco as escadas. Dali eu via meu pai sentado no sofá, desolado. Com a cabeça entre as mãos. Seu rosto estava mais pálido que o normal e seu cabelo todo desgrenhado, não conseguia ver Beatrice mas numa hora destas ela deveria estar lá fora, tentando dar qualquer notícia aos polícias ou até mesmo, fugido. Seria melhor assim, fugir.

- Estaremos investigando, senhor. Esperamos trazer notícias o mais rápido possível. - Não era as palavras mais confortadoras que alguém poderia ouvir mas meu pai também não respondeu, como fingiu estar desligado. Ele estava se desligando. Se desligando da humanidade temporariamente.

Os polícias aos poucos foram juntando suas coisas e todos eles saíram de cada cômodo debaixo da casa, mas boa parte da cozinha. Pareciam curiosos, um pouco assustados. Considerava que não fosse normal um caso como aquele acontecer em Paraíso, e este seria o primeiro. E eu, seria o comentário da escola amanhã.

* * *

Normalmente quando estamos em luto, ficamos em casa até nos recuperarmos de uma grande perda. Mas tudo estava normal quando me levantei e encontrei papai fazendo seu café na pia, Beatrice arrumando a mochila de Pedro e já com o uniforme. Eles pareciam despreocupados e até mesmo me fez pensar que eu estivesse sonhando, ou quem sabe tivesse imaginado coisas? Não fazia ideia, talvez se eu me beliscasse eu voltasse a realidade mas acredite, não adiantou.

- Esta pronta? - Sussurrou Bea, me olhando parada e prendendo os cabelos rapidamente. Eles continuam um emaranhado de fios, até a sua aparência antes bonita se esvaiu. Era triste, mais era compreensível. Eu também deveria estar assim mas porque não estava? Suspirei e concordei antes de ir pegar a minha mochila e prender os meus cabelos no caminho pro carro. Havia chovido boa parte da noite e Pedro tinha passado todo o seu tempo resmungando palavras indefinidas para mim, e eu preferia nem mesmo me focar nisso.

Beatrice deixou Pedro no seu colégio anunciando que papai não o levaria pelo fato de ter que ir a delegacia agora de manhã, e o garoto ainda não sabia de quase nada do que aconteceu. Eles achavam isso, mas eu sabia que era diferente. Crianças entendem tudo, tudo mesmo. Afinal, já fui uma e sabia e entendia a mente do meu irmão. Em todo o caminho a minha irmã se manteve quieta, focada na estrada e as vezes me olhava como se quisesse entender o que eu pensava. Mal imaginava ela que eu pensava nela, que eu queria entender ela mas não conseguia. O que de fato ela sentiu ao abrir a caixa e ser recebida daquela forma? De ver o braço que a segurou quando mais nova? Sangrento, massacre, derrotada, Beatrice.

Nos corredores as pessoas me observavam mais do que o normal. Olhavam diretamente no meu rosto como se fosse eu quem havia tido a capacidade de arrancar um braço da minha própria mãe e enviado para casa. Quem teria feito isso tinha sangue frio o bastante, e eu não tinha. O Sangue que corria dentro de mim era quente, levemente grosso, adocicado e com gosto e cheiro de ferro do qual eu sentia nojo. Mais bombava dentro de mim e me mantive firme e de pé, para continuar andando naquele corredor frio e sem escrúpulos.  Eu queria encontrar a minha sala, mas também havia esquecido meu papel de horário em casa e isso poderia se dizer que era uma salvação pra mim mas não seria. Encontrei com Patrícia que veio me abraçar como se eu fosse sua amiga mais intima, e eu quis sorrir e retribuir aquele carinho súbito, mas não tive capacidade, apenas fiquei parada.
- Estive preocupada com você. Esta precisando de alguma coisa? - O que ela sabia?
- Na verdade eu preciso ir pra sala, mas esqueci meu horário então não faço ideia de qual seja a minha primeira aula. - Sussurrei. Patrícia concordou por um momento e foi me arrastando pelos corredores, me obrigou a descer as escadas e a entrar no mesmo corredor de semana passada. Com cheiro de tinta fresca, e com o som de nossos passos a cada deslize no chão encerado e brilhante. Ela me acomodou na cadeira de semana passada, e se sentou bem ao meu lado, parecendo tão protetora. Mas eu via em seus olhos que ela de fato estava preocupada, o que era bom mais desnecessário. Não precisava de ser assim. Não queria que fosse assim.
- Michael esteve preocupado com você durante o fim de semana todo. Me ligou todos os dias querendo saber se eu tinha notícia suas. - O que era mentira. Como Patrícia saberia de algo sobre mim? Sendo que quem tinha o número de casa, era ele mesmo? Bufei por um instante antes de encarar a garota ao meu lado e sorrir. Sabia como a minha face estava vermelha. Eu me sentia quente. Quase a mesma sensação de febre.
- Depois..eu..falo com ele. Obrigada. - E novamente Patrícia se calou. E foi assim durante todo o resto do dia.

* * *
No intervalo encontrei um refúgio e tanto. A Biblioteca. Ela era silenciosa, quente e aconchegante, quase me lembrava meu quarto, só faltava uma cama com lençóis cheirosos. Conheci a senhorita Marie. Antiga bibliotecária da cidade da qual todos respeitavam, já que seu legado em Paraíso era enorme, e o fardo que ela carregava, ainda maior. Ela era comunicativa embora as placas em torno da gente pedissem silêncio. Marie cheirava a talco de flores, seus cabelos eram mesclados de branco, sua pele morena e com pouquíssimas rugas. Queria saber seu truque para poder chegar aos 78 anos, com uma beleza tão diferenciada. Suas roupas eram simples e seu modo de dizer era ainda maior.
- Vim de Londres quando ainda era pequena e até hoje trago meu sotaque. Trago-o por querer lembrar da época boa em que vivi. - Vi como seus olhos castanhos brilharam para mim ao comentar sobre sua vinda para cá. Era bom ouvir outras histórias. Outras pessoas, assim, não me sentiria diferente.
- E porque não ficou aonde estava? - Disse assim que Marie se virou de costas para mim em busca de uma pilha de livros. Ela soprou a poeira depositada por mim devido ao tempo. E me respondeu:
- Porque Paraíso é uma prova de vida. Meus pais na época acreditavam que seria diferente de tudo. Um lugar mais calmo para os filhos. Que estudariam e se tornariam algo. Devo considerar bibliotecária uma profissão?
- Sim. Independente do que faça ainda é uma profissão. Uma profissão muito legal. - Marie riu e o som da sua risada ecoou nos corredores.
- Inteligente da sua parte acreditar que em Paraíso, somos algo. - E então me deixou sozinha no meu canto. A biblioteca era enorme.

Lembrava-me o refeitório da escola pelo seu tamanho. Mas ao invés de mesas e cadeiras, tias e alunos gritando. Era preenchida por estantes enormes que encostavam no teto, abarrotadas de livros enormes, desde os antigos até alguns mais recentes - que devem ser pesquisados com cautela caso procure-os -. Nos fundos haviam mesas redondas espalhadas pelo enorme "recinto". Mesas empoeiradas e cadeiras idem. Soube por Marie que a biblioteca havia ficado fechada durante um ano inteiro após uma briga, que causou o sofrimento de uma jovem que até hoje não tinha se recuperado do trauma. O que era péssimo, mas a reabertura daquele salão era algo perfeito para mim. Não era pelo fato da biblioteca cheirar a poeira e pinicar meu nariz, nem mesmo os espirros me incomodavam mais, o silêncio sarava-os.

Cheguei a pegar meu caderno de desenho e apoiá-lo próximo a uma das enormes janelas que iluminavam as mesas do local. Queria algo diferente e por incrível que pareça me sentia inspirada. Olhei de soslaio no relógio e percebi que ainda estava cedo. Daria para mim terminar meu desenho sem preocupação. Da janela eu tinha a visão de um campo aberto, o sol vinha de frente para mim. Num tom alaranjado sob os pequenos morros que cercavam a cidade, e que eu o considerava um péssimo meio de proteção. Apontei meu lápis e me concentrei. Meus olhos se fecharam por longos instantes até me ver iniciando riscos diversos no papel em branco. Seguia um ritmo lento e sem me preocupar com o que formaria, e até mesmo aos borrados que surgiam a cada esfregar de mão ou dedo, este era um risco que se corria ao usar um lápis 3B de ponta tão fina e delicada.
- Você desenha bem. - Alguém tirou a minha concentração. Me assustei ao olhar para trás e ver que era Michael. Seu rosto despreocupado me fez fungar e ir fechando o meu caderno, guardando meu lápis, borracha e todos os outros objetos que me cercavam. Meus dedos já estavam pretos quando eu olhei para a minha própria mão. Era inevitável dizer que aquilo me consideraria uma garota suja, mas eu chamava de arte e esforço, e os dedos vermelhos e manchados de preto, não eram nada demais.
- E você não deveria estar aqui, falando. - Apontei para um dos panfletos colados na parede que pedia silêncio enquanto me jogava na primeira cadeira que eu vi em meio a um punhado de livros que Marie me trouxe, achando que me interessaria por contos antigos ou livros de poema.
- Dona Marie não se importa de ver alunos conversando por aqui. Afinal, a um ano não recebe visitas. Pelo livro preto, você é a primeira a vir aqui. - Devagar Michael foi se sentando ao meu lado. Seus olhos como sempre tão fixos em mim me deixavam perdidas. Seu corpo cheirava a mesma colônia que sua blusa de frio tinha, que por sinal deveria devolver mas não conseguia, não queria. Durante estes dois dias, dormia com o cheiro de Michael, e sonhava com ele me protegendo.
- Acredito que se importe sim. Vazia ou não ainda é uma biblioteca. - Ele não disse mais nada, apenas arqueou um dos lados da boca. Sabia que surgiria um sorriso dali, que não veio. Até ele tomar as minhas mãos e segurá-las para si. Foi uma ótima maneira de me fazer encará-lo nos olhos, coisa que não tinha o costume, e odiava.
- Eu vim aqui pra falar com você sobre o acontecido na sua casa. Sinto muito mesmo!
- Quem deveria sentir sou eu. Não se preocupe. Esta tudo bem..
- Pelos seus olhos não. Você chorou? - Não respondi. - Me diz...
- Não...
- Mas deveria. Chorar limpa a alma.Por mas que eu não queira te ver chorar, mas se te fazer bem, eu permito. - Abaixei por um instante a minha cabeça. Queria ter tempo de refletir sobre o que estava acontecendo ali dentro. Mas o tempo resolveu parar bem agora, e nada me tirava da cabeça como Michael conquistou algo que nem mesmo a minha irmã conquistou durante anos. A minha confiança. Ele conseguiu me domar de tal forma em que ele me puxou tão forte contra seu peito. Ele me abraçava como se eu fosse uma criança ou entendesse perfeitamente o que tivesse acontecido ali, ou como se fosse o culpado. Eu poderia entender a mente de um assassino. Mas Michael não era um, poderia ser considerado por mim um amigo, e agora, protetor. Eu nunca havia tido algo assim, nunca havia tido ninguém próximo o bastante para se preocupar comigo, ou para me olhar nos olhos e pedir que eu chorasse, porque era isso que eu precisava.



Na hora da saída, Michael fez questão de me acompanhar até a caminhonete da minha irmã. E enquanto não me viu entrar no banco de carona e acenar para ele, não subiu em sua moto e foi embora. Coisa que deixou Beatrice desconfiada, embora distante e que não tenha aberto a boca pra falar absolutamente nada para mim. Nem mesmo para chamar a minha atenção pelo fato de me apegar alguém numa situação dessa.

Quando chegamos em casa, papai já estava lá só que em seu escritório. E não teria percebido isso se eu não tivesse passado pelo corredor que dava para o meu quarto. Geralmente o escritório estava sempre fechado, nem mesmo mamãe entrava lá para limpá-lo, porque achava desnecessário, já que papai não entrava lá, e só havia papéis antigos, escritura da casa, documentações e etc. Resumindo, coisa de adulto. Tomei um banho rápido e prometi para Bea que cozinharia pela primeira vez. Estava com fome e ao mesmo tempo cansada, e ainda assim tive forças o bastante para preparar uma macarronada qualquer e deixá-la no fogo, e não esperar ninguém para sentar e comer. Nunca tive problema em comer sozinha.

Logo após a janta eu me deitei e Beatrice chegou com Pedro. Que me abraçou e foi se cuidar. Com certeza me deixaria em paz até a hora de dormir, já que estava se acostumando com a ideia de ouvir histórias todas as noites. E eu amava isso. E me fazia imaginar se seria diferente quando tivesse o meu próprio filho. Iria amá-lo e protegê-lo. Contar histórias diversas e vê-lo sonhar. Vê-lo se imaginar dentro daquela história, sendo o personagem principal matando o vilão.

Tentei dormir por um momento mas o sono não vinha, embora meus olhos estivessem pesados o bastante. Era como se a minha cabeça não estivesse cansada ou quisesse se desligar por algumas horas. Rolei diversas vezes na cama e me lembrei de Michael. Como seu sorriso era reconfortante e sensível. Como as pessoas gostavam dele mas ao mesmo tempo, queriam se manter longe dele, e seus únicos amigos, era o grupo preenchido por Patrícia, que mais se parecia sua irmã do que amiga. O que deveria ser algo legal. Ainda tinha o cheiro dele da na minha camisa do colégio, e não me preocupei em cheirá-la assim que tirei e me lembrar como senti vontade de chorar ao ser abraçada por ele hoje mais cedo. Me coloquei por um momento no lugar de Sara, a minha mãe pra entender o que ela diria dessa situação e desse relacionamento novo que surgia.

Ela me permitiria a ficar próxima das pessoas, mas não o bastante para confiar nelas.

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