Parte Três: Contra o Tempo

Meu segundo dia na escola havia sido tranquilo, diferente do primeiro, não vi Jennifer em lugar algum e cheguei a cogitar a ideia que estava fugindo de mim ou planejando algum ataque surpresa. Patrícia esteve comigo o tempo todo e inclusive Michael, que passou algumas vezes perto de mim no corredor e sorriu feito um bobo, mas eu não retribui, não havia motivo para risos, nem mesmo suas piadas forçadas no intervalo, querendo quebrar aquela sensação tensa de que a qualquer instante eu iria fazer novamente a mesma pergunta: O que realmente aconteceu nessa cidade que ninguém me explica?

Durante toda a semana eu prometi a mim mesma que daria um jeito de permanecer até mais tarde na escola para fazer pesquisas. O que era evidente, causaria uma confusão entre mim e Beatrice, que agora dava uma de mãe, jurando que quer apenas me proteger acima de tudo, só que com toda essa pressão ela apenas me afasta mais e mais. Fiz inscrições para dois "projetos" que se iniciaram na escola, um deles era de teatro, que ainda não havia nada planejado, nem personagens criados ou já direcionados para cada um dos participantes. Mais Michael participaria também e inclusive, tentou puxar assunto comigo, responder eu responderia, mas também não queria dar assunto, tinha outros planos e ele assim como qualquer um seria capaz de me atrapalhar. E o outro projeto era um grupo de leitura e fotografia, da qual me adaptei muito bem desde o primeiro dia, onde mostrei as minhas fotografias e todos ficaram impressionados pela qualidade e como mesmo com as mãos tremulas, consegui captar tão bem sentimentos e momentos que poderiam passar num piscar de olhos.

Não expliquei mas sofro de reumatismo, além da dor aguda que resolve me ataca em boa parte do dia, as minhas mãos tremem o bastante para que não tente segurar uma xícara por muito tempo. Um copo com leite se tornaria um milk-shake, era exagero eu sabia, mas meu irmão mais novo costuma me repetir isso toda vez em que derrubo algo. Pelo menos tenho algo a que culpar. Meus pais já me levaram no médico, mas preferi não tomar os remédios, incomoda mas não o bastante para que fique dopada de tanta medicação. Mamãe foi contra, papai também mas no fim, guardava as minhas reclamações e eles até se esqueceram. O que eu também não entrei em detalhe no grupo que me acolheu com todo carinho e boa parte dos membros eram garotas, uma delas apenas era mais velha, as outras, tinham a mesma idade que eu. Eu ouvia de tudo um pouco ali dentro daquela sala com um tom engraçado.

Que variava entre o laranja e o cinza, além do cheiro intenso de poeira que só aumentava cada dia em que me infiltrava ali para falarmos sobre fotografia, discutirmos sobre tudo um pouco. Essa era a intenção do grupo, debater e ensinar as outras pessoas que gostavam de ler e fotografar, mas estavam no começo, ou tinham a intenção de iniciar algo, mesmo que não fosse nada sério. Vi pessoas fotografando melhor do que eu e com livros novos em seus braços na sala, a principio as rotularia como ricas, boas de vida, mas pelo contrário, assim como os meus eram ganhados de familiares já que os pais não davam tanta importância a paixão pela leitura e fotografia.

Eu não tinha tantos livros também, a maioria eram ganhados da minha avó e da minha tia, estavam empoeirados na estante montada pelo meu pai sobre a minha cama. Além de Patrícia havia criado um vinculo rápido com outra garota conhecida como Brooke, só que seu verdadeiro nome ainda era um mistério para todos no colégio desde o momento em que ela surgiu lá. Até me sentei com ela na hora do intervalo na intenção de interagir, todos eram diferentes da mesa de Patrícia, não tinha tanta aquela interação e os assuntos em particular, eram tristes e me deixaram deprimidas a ponto de abandonar o refeitório antes mesmo de tocar o sinal.

Aprendi muita coisa só nessa semana. Uma delas era que todos estavam sempre com pressa, e sempre quando dava o horário de ir embora, não sobrava ninguém até anoitecer, a não ser Michael, que por sorte eu peguei seus horários e decorei cada um deles e sempre que podia, fugia, não era por nada mas seu olhar era penetrante e era como se ele me lesse profundamente e por incrível que pareça, ele percebeu a forma com que sempre fugia dele, tanto que estava vindo na minha direção enquanto andava o mais rápido possível. Meus pés se enrolaram um ao outro no instante em que ele foi mais rápido e me segurou. Foi como se algo tivesse me empurrado. Eu sabia o motivo, era um misto interno de nervosismo, ansiedade e fraqueza, o que eu vinha sentindo com frequência. Mas eu sempre soube disfarçar bem. Eu sempre fui uma garota considerada pelos outros franzina. Com aparência de doente e de rosto sardento e engraçado. Sobrancelhas grossas e bem desenhadas, lábios firmes e com contornos perfeitos. Mas mesmo assim nunca fui chamada a atenção pela minha aparência, e como dizia Beatrice.

- Somos comuns demais! - Foi o que eu pensei no momento em que Michael me ergueu e me fez voltar a realidade. Fui me recompondo o mais rápido possível e ajeitando minha saia e até a meia que se enrolou toda nas minhas pernas. Quando pude olhar melhor em seu rosto ele parecia despreocupado, mais suas bochechas estavam levemente avermelhadas assim como o nariz, o que jurei ser devido o frio que era dentro da escola, e até mesmo pelo frio que fazia nas ruas. Estávamos saindo do outono e direto para o inverno, que costumava ser intenso aonde morava, mas por aqui eu não saberia diferenciar, todos os dias eram frios, saindo sol ou não.

- Você esta bem? Esta pálida. - Michael estendeu uma das mãos para tocar a minha testa só que me afastei antes dele encostar um dedo em mim, e ele pareceu surpreso. Eu era difícil de entender o motivo das pessoas desejarem tanto me tocarem. Nem mesmo meus irmãos faziam isso, quem dirá um estranho? Mas as pessoas não sabiam disso e eu precisa aprender e compreender que elas não sabem disso.

- Eu, eu estou bem Michael. E quanto a minha palidez, já deveria ter se acostumado com isso. - Ajeitei a mochila sobre os ombros e comecei a caminhar rumo os degraus que dava ao primeiro andar. Ele vinha atrás num passo mais lento, o que com certeza dava a chance dele me observar. Eu deveria parar e olhar em seu rosto, mas não o fiz, apenas continuei, expirando e inspirando, o que era fácil para mim, para todos.

- Espera ai. Quer comer alguma coisa comigo? Hoje é sexta-feira e tem umas lanchonetes legais por aqui abertas. - Parei abruptamente no caminho, o que fez ele parar alguns centímetros atrás de mim. As pessoas não tinham o costume de me convidar para sair. Sempre fui de andar com Beatrice e Pedro, e às vezes com os meus pais, o que era uma atividade rara. Sabia que não teria problema eu sair com Michael e voltar logo para casa, mas poderia preocupar ainda mais meu pai e a minha irmã com meu sumiço. Olhei por algum tempo no rosto do garoto parado a minha frente. Que trajava uma camisa branca com um suéter sem mangas de cor azul, sua gravata estava levemente desfeita, e a calça antes sempre lisa, estava toda amarrotada. Suas mãos se moviam dentro dos bolsos e seus pés batiam no chão, ele parecia ansioso e esperava um sim vindo de mim.

- A minha irmã deve estar me esperando pra irmos embora. Posso deixar para outro dia? - Seu cenho se franziu quando terminei de falar, e ele sorriu tímido, coisa que ele não era e jamais seria, não com aquele olhar.

- Qualquer coisa eu peço pra ela. Prometo te deixar em casa antes das oito.Ainda vai estar claro, você sabe disso! - Engoli em seco e concordei. Vinha observando tanto o céu ultimamente que percebi o quanto demorava para escurecer em Paraíso. Decorei cada tonalidade, temperatura, onde os pássaros se acomodavam. Por fim, Michael foi comigo para o lado de fora da escola onde ainda havia alguns alunos além de nós e alguns carros parados no estacionamento, inclusive a caminhonete de Beatrice. Ela me esperava numa roda de amigos que ela havia feito e assim que me viu ela sorriu, mas fechou a cara no mesmo instante em que viu Michael comigo.

- Posso sair um pouco com ele? - Nunca havia pedido nada, não pra minha própria irmã e isso era estranho e ao mesmo tempo, constrangedor. Beatrice olhou para mim e para Michael por um longo instante até engolir em seco e se despedir de alguns colegas, mas ainda permaneceram parados ao seu lado três ou quatro garotas que observam a cena.

- Aonde vocês pretendem ir? Preciso saber pra contar pro papai, e outra. Hoje ele chega tarde, e não é por isso que vai aproveitar do momento. - Concordei e Michael tomou as rédeas, ficando um pouco mais a frente de mim.

- Eu quero mostrar pra ela alguns lugares da cidade. A gente acabou de sair da escola, é sexta-feira, tem algumas lanchonetes legais por aqui e achei que seria bom ela conhecer. Sua irmã é bem tímida. - Revirei os olhos quando entendi o que ele estava querendo fazer. Seduzir ou agradar a minha irmã que caiu perfeitamente na dele e sorriu, e parecia prestes a abraçar o garoto que antes a fez suspirar e dizer bem baixinho "Lá vem merda".

- Quero ela em casa antes das oito e meia, ok? - Michael concordou e segurou meu braço conforme fomos nos afastando da minha irmã e seguindo na direção da sua moto. Desta vez ele tinha dois capacetes e entregou um deles para mim. Com certeza havia dado carona para alguém para estar tão "protegido. Subi na garupa da moto sem frescuras e ele também se acomodou na minha frente, me deixando apenas com a sua mochila. Ele acelerou e tomou um longo caminho que antes só havia pego com Beatrice. Eram ruas com diversas saídas e boa parte delas não havia um movimento que fosse de carro a não ser motos, bicicletas e famílias. Boa parte das portas abertas eram de lanchonetes, sorveteria, cafeteria e bancas de jornais. Imaginava que todos frequentavam ali por tudo ser tão perto e familiar. Mas ainda assim não era ali que Michael iria me levar, e mesmo que eu tentasse adivinhar, para mim, era uma tarefa difícil por não conhecer nada nem ninguém, inclusive quem conduzia a situação.

* * *

Quando a moto parou eu desci o mais rápido possível e esperei Michael estacionar a sua moto em meio a vários carros parados em torno da gente. As ruas por ali eram diferentes e me lembrava alguns ponto de Paris e as casas que adornavam as ruas ruidosas pareciam as de Veneza. Só que sem a inundação e os barcos românticos. A principio estranhei o cheiro intenso de mofo, que fora substituído rapidamente por dois cheiros característicos, um deles era das flores das sacadas acima da gente, e o segundo cheiro era de molho de tomate.

- Vem, vou te levar a uma verdadeira pizzaria. - Novamente Michael tomou meu braço e foi me guiando em meio aos carros e pessoas. Ainda não achava que eu estava em Paraíso, porque tudo era diferente, desde o cheiro, as pessoas, e a quentura que era passada para dentro de mim e me fazia borbulhar intensamente. Michael me levou a uma pizzaria que ele jura para mim ser ponto de referencia na cidade, inclusive um pedido do qual eu não pude negar e tive que ser obrigada a pedir quando o garçom nos trouxe o cardápio e pedimos uma pequena porção de pizza de sardinha. Que era algo da casa, e era nada mais nada menos que uma assadeira pequena, com uma cobertura suculenta de molho de tomate, sardinha e outros temperos do qual eu reconheci na primeira mordida, além do picante realçado. A segunda coisa da qual eu experimentei foi o suco produzido pelo Chefe "Pasta". Que nos trouxe uma jarra cheia e trincada de tão gelada que o liquido dentro dela se encontrava. Não havia açúcar algum a não ser o doce do suco de uva com gás. As bolhas estouravam dentro da minha boca e Michael riu quando eu comentei a experiência, e ele disse se acostumar.

- "Pasta" é seu tio mesmo? - Comentei. Dando goladas na minha bebida e olhando Michael mordiscar seu pedaço de pizza. Quando ele limpou os lábios ele concordou.

- Minha família é da França. Ou melhor, meus pais. Eles vieram ter eu e meu irmão aqui, já tendo a minha irmã que cresceu e tem o sotaque francês melhor que o meu. "Pasta" é irmão do meu pai que deu a eles a ideia de se mudarem para cá já que a cidade era pacifica e poderiam criar perfeitamente três filhos. - De fato Michael não tinha sotaque algum. Sua voz era de alguém mais velho do que ele aparentava. Era grossa, definida, e ele diferente de mim, não errava ou arrastava uma palavra que fosse.

- Quer dizer que não teve tempo o suficiente para conhecer a França e suas iguarias? Veio conhecer apenas agora? Comendo a pizza do seu tio? Deve ser legal. - Sussurrei. Mordiscando o restante da minha pizza, até limpar meus dedos e suspirar, cheia.

- Não me lembro de nada da minha infância para ser exato. Não tenho lembranças da minha infância e nem mesmo de ter visitado a Torre Eiffel quando tinha 9 anos com meus pais.

- Sempre digo para a minha irmã que se não tenho lembranças da minha infância é porque ela não existiu...e se existiu, deve ter sido tão ruim que eu bloqueei todas elas para que elas não me afetassem na juventude. - Michael ficou me olhando surpreso. E eu corei, abaixando os olhos para o meu dedo que circundava a borda do meu copo.

- Satisfeita? - Assenti. Vendo Michael se ergueu e ir ao fundo da pizzaria cumprimentar e se despedir do tio, que acenou para mim e sorriu com seu enorme bigode, típico de um pizzaiolo. - Vou te levar numa sorveteria agora. Vem cá! - Segurando meu braço com firmeza, corremos até uma sorveteria logo na rua de trás da pizzaria. Tudo ali era baseado em becos bem iluminados e movimentados. Perdi as contas de quantas vezes me peguei pensando em voltar ali e fotografar tudo, porque era tanta novidade que a minha cabeça não conseguia mais assimilar mais nada e eu queria me lembrar de tudo aquilo, olhando as fotografias seria mais fácil.

Michael me fez experimentar o sorvete típico da cidade e o preferido dele. Iogurte com pedaços grosseiros de amora. Acreditem, era delicioso e não resisti, pedi por mais de tão bom que era. O doce do iogurte era quebrado graças ao azedinho da amora, que dava um tom arroxeado em tanto branco numa única massa.

- Desse jeito até o fim da noite eu vou estar enorme. - Ele riu. Me guiando em meio a uma subida estreita. Nos acomodamos em bancos frios enquanto tomávamos nosso sorvete em silêncio. Michael parecia entretido e animado. O que era difícil. Boa parte das pessoas deveriam se sentir entediadas com alguém feito eu, mas ele parecia despreocupado com a forma com que eu falava, e até mesmo, não conseguia me expressar.

- Se quiser amanhã te levo pra conhecer outros pontos da cidade. Você vai amar assim como aqui. - Sua voz quebrou o silêncio, e em meio as sombras eu vi como seus olhos brilhavam na minha direção e que seu sorriso era por um único motivo, eu.

- Tem problema se eu trouxe uma companheira minha?

- Não me importo. Mas quem seria? - Desta vez quem sorriu foi eu. Deixando de lado o meu copo que fazia meus dedos adormecerem de tão gelado que estava.

- A minha câmera. Quero fotografar cada lugar que você me levar. Quero voltar aqui também, se não for problema.

- Eu te trago. Amanhã então? - Não sabia se seria uma boa ideia confirmar algo, ainda mais com tudo o que estava acontecendo dentro de casa. O desaparecimento de mamãe, a minha irmã sozinha, Pedro e meu pai. Desolado.

- Vamos ver. Qualquer coisa eu te ligo, te passo meu número de casa. E você também sabe bem aonde eu moro. - Ele ficou me encarando por um tempo até concordar e ir se levantando.

- Claro. É melhor irmos indo. Caso contrário a sua irmã irá me capar.

* * *

Não era porque ainda estava claro que não estava frio. E acredite, estava intenso a ponto de eu bater o queixo até chegar em casa. Embora Michael tenha teimado comigo e enquanto não tinha aceito a sua blusa de frio - que não adiantou muito - ele ficou no meu pé. Ela era quente e tinha seu cheiro e não me incomodaria em dormir com esse perfume tão doce, tão...menino.

- Você tem um caminho longo até sua casa. - Ele mesmo não foi capaz de me levar até a varanda de casa. O que me tirou totalmente do foco e me deixou enfurecida. Acabei de ter um encontro e nenhum beijo vai acontecer? Que estúpida.

- Eu sei. Obrigada pela noite, e amanhã conversamos. - Estava prestes a virar as costas e pegar meu caminho, quando ele me chamou de volta. Pela escuridão que preenchia a gente eu vi seu sorriso, e como ele me olhava como se fosse me capturar e não me soltar nunca mais - me permitiria a isso sem problema algum, sendo ele...sendo Michael -.

- Até amanhã, pequena. - Me derreti. Seu corpo todo inclinado sobre a moto. Seus braços definidos pela força da qual ele retirava lá do fundo para impulsionar a moto a tomar seu caminho me fez gemer baixo e despertar daquele sonho bobo. Mesmo quando ele ajeitou o capacete e me tirou toda a visão do seu rosto moreno, eu tive certeza que seria capaz de sonhar com aquela cena. Diferente dos pesadelos que costumava ter, seria a melhor noite de todas. I Do!

Deixei a minha mochila sobre o sofá de casa onde eu simplesmente me joguei. Meus pés estavam duros de tão frio, e a ponta dos meus dedos estavam roxos. Adorava o frio, mas também não era adepta e nem estava preparada o suficiente para tanto frio. Inclusive nas noites, que costumava ser um inferno, agora, sabia bem como era. Beatrice vinha da cozinha com seus olhos enormes e se acomodou na poltrona de frente ao sofá em que eu estava. Parecia curiosa e a espera de qualquer comentário que fosse feito por mim sobre esse encontro e até sobre Michael, coisa que eu não faria e nem mesmo era obrigada.

- Papai ainda não veio, por isso a porta ficou destrancada.

- Deveria tomar cuidado com isso. Não é porque moramos no meio do nada, que estamos sozinhas. - Esbravejei. Olhando para a minha irmã que revirou os olhos e jogou as pernas sobre a mesa de centro.

- Eu ainda estou acordada. Coloquei o Pedro pra dormir agorinha. Fiz sopa!

- É só isso que você sabe fazer mesmo. Idiota! - E fui me levantando o mais rápido possível, podendo fugir de uma bota que voou bem na minha direção enquanto subia as escadas que dava pro meu quarto. Precisava tomar um banho mas a preguiça me dominava tanto a ponto de eu querer apenas dormir, e rezar. Rezar para que a mamãe voltasse logo e que tudo se normalizasse. Rezar para que o papai voltasse a ser aquele homem ativo que era semanas atrás. Rezar para que Pedro não sentisse tanta a falta e a necessidade da mãe por perto, o que até eu, que era uma garota, e tinha idade o suficiente, sentia falta, e ele? Tão pequeno? Beatrice tentava disfarçar e dar uma de dura, mas era inevitável não perceber suas olheiras, como sua aparência estava desleixada. Coisa que quase nunca era aparente, e isso me deixava bem claro que a situação estava de fato bem feia.

No fim, me enfiei debaixo do chuveiro após me despir e fiquei lá um curto período. Lavei meus cabelos e os penteei ali mesmo para poupar tempo. Coloquei meu moletom velho, e ajeitei as meias nos pés para então descer e ir na cozinha em busca de fazer meu chá. Mais uma lembrança típica da minha mãe me veio a cabeça. A forma com que ela nos fazia dormir tranquilamente com suas xícaras de fundo amarelo, e o cheiro de erva-doce e cidreira. Fiz ambos numa xícara e fiquei olhando por algum tempo pela janela da cozinha como a névoa ia preenchendo o gramado em torno da nossa casa. Era quase como se fôssemos invisíveis aos olhos do mundo, e dali não era notável a casa "vizinha", se não fosse a luz laranja bem distante. Ouvi ruídos no forro de casa e nem me surpreendi quando a porta foi batida duas ou três vezes. Beatrice não demorou a vir, gritando que seria o papai quem esqueceu das vezes e não poderia abrir, sendo que ela já estava aberta.

Mas o que eu ouvi foi algo totalmente diferente e inesperado. Que arrepiou todos os pelos do meu corpo e me fez correr até a sala, onde a minha irmã gritava sem parar e apontava pra caixa. Porque no fundo eu sabia que eu encontraria algo assustador ali dentro? E pelos olhos marejados e esbugalhados de Bea, soube que era algo assustador e era da minha mãe. Da Nossa mãe.

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